Bemdito

A mulher que tinha um calendário na pele

Um relato sobre os rastros de sol e de dor inscritos na pele curtida
POR Jamieson Simões

Um relato sobre os rastros de sol e de dor inscritos na pele curtida

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

Eu estava numa das minhas quebradas preferidas da cidade. As crianças corriam pra pegar na minha mão ou receber algum afago, os olheiros que guardavam as entradas dos becos permitiam meu avanço. Tudo certo. Manhã de sábado. Sol a pino. As mulheres lavando roupas nas calçadas, os poucos jovens que escaparam com vida buscavam as poucas sombras de árvores para se refrescar do calor. Eu caminhava, solo conhecido, já estivera ali tempo demais e nunca em tempo de paz. O IDH de 0,17 diz pouco mas o suficiente sobre aquela região. Falta pouco até o fim do morro onde vou encontrar um amigo. Ele quer que eu conheça uma pessoa.

Do alto da montanha de lixo (aquele não é um acidente geográfico, é um acidente político) dá pra ver até os bairros próximos com sua estranha planície, tudo muito reto, cartesiano. Dou um tempo, e meu amigo chega na companhia de uma mulher. Vou chamá-la de Yolanda. Passei a mão no cabelo, tentando ajeitar o espírito pra receber o que virá dali. Eu conheço sobre dor. Yolanda sabe mais do que eu. A boca desdentada, os cabelos maltratados, vestido de filó. Parecia uma cena anacrônica. Aquela mulher poderia ser facilmente uma viúva da seca, uma retirante. Talvez ela fosse tudo isso.

Yolanda me abriu seu tesouro (as dores são o melhor de nós/falam do que amamos/daquilo que nos move). Senti o tranco no peito. Pancada forte. Fico de cócoras. Ela joga habilmente o vestido entre as pernas e fica de cócoras também. O ritual de identificação começou. Tudo pronto para o que se seguiu:

– Meu filho! Eu tenho 52 anos todos vividos aqui nesse chão. Seu amigo disse que você escuta estórias, vou lhe contar a minha. Sou Casqueiradora (você sabe o que é?), cato no lixo o pão de cada dia. Junto tudo e vendo no “deposeiro” ali em baixo e é assim que tenho escapado com meus filhos, aqueles que Deus permitiu viver. Eu tinha quatro filhos. A fome levou um em 1998. Em 2005 outro foi assassinado. Em 2008 outro morreu atropelado nessa pista aí. Sobrou um e depois eu tive mais quatro filhos. Hoje mesmo eu saí pra pedir esmola com eles. A casqueiragem tá ruim… Essa é a minha história. Eu sinto a falta dos meus filhos todos os dias. Essa saudade não passa, seu moço. Desculpe o mal jeito, nem lhe conheço mas precisava contar ou enlouquecia.

Levantei primeiro (meus joelhos já estavam reclamando). Estendi a mão e ajudei Yolanda a levantar, depois abracei aquela mulher. O cheiro de sol, lixo e suor entre nós era nossa oblação não ao Deus que levou seus filhos, mas era nossa oferta a nós humanos. Cronologicamente, a história de Yolanda parecia não caber nos anos. Só havia um lugar em que poderia caber tantos anos e tantas perdas: na pele. Os sulcos profundos, a queimadura do sol carrasco, o modo que a pele se retorcia sobre aqueles ossos me dizia sobre os anos, sobre as dores, sobre a vida de Yolanda. Foi aqui que aprendi que o tempo não se conta no calendário. É na pele que o tempo deixa a marca de sua passagem. Yolanda tinha o calendário na pele.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.