Cortes no Censo e os riscos à democracia
De políticas urbanas à saúde, conhecer a realidade é imprescindível
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Na última coluna, havia prometido aprofundar o tema de planos diretores. Esta semana, no entanto, precisamos falar sobre algo que impacta este e outros planos: os mais recentes cortes na realização do Censo 2020. O processo de esvaziamento da pesquisa vem acontecendo pelo menos desde 2019, quando especialistas já alertavam para o perigo apresentado pela interrupção de séries históricas e também para os impactos sobre o planejamento, monitoramento e execução de políticas. De lá para cá, os cortes propostos apenas têm se acentuado, passando de um orçamento previsto de R$ 3,4 bilhões em 2018 para os R$ 190,7 milhões em discussão hoje no Congresso, uma redução de mais de 94% – que, na prática, torna inviável sua realização.
Reconheçamos: é uma medida coerente – e conveniente – para um governo negacionista e autoritário. Trata-se de mais um golpe mortal sobre o estado brasileiro e a sua população. Se em 2019 não se podia imaginar que entraríamos em 2021 vivendo a maior crise sanitária do século, com mais de 300 mil mortos em apenas 12 meses de pandemia, desde pelo menos maio de 2020 já estamos cientes da gravidade do que vivemos.
Estar à deriva, sem uma coordenação federal para o enfrentamento à pandemia, tem sido uma tragédia sem precedentes, mas ainda assim debilmente enfrentada através da ação de outros entes federados (estados e municípios) e da produção de análises por centros de pesquisa, universidades, sociedade civil organizada e outros atores que utilizam cotidianamente dados do Censo para o embasamento de suas propostas. E epidemiologia depende da demografia. Como o médico e professor da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Lotufo, apontou recentemente, “a epidemiologia trabalha intimamente com a demografia”. Por isso, “a ausência do Censo será um limitante a mais nas análises de mortalidade e incidência de doenças”.
O Censo também é a base para diversas outras áreas e políticas, como o próprio planejamento urbano. Decidir os rumos das cidades requer, primeiramente, que se conheça qual é a realidade atual delas. Não se planeja sem saber o ponto de partida. É impossível formular planos diretores sem os dados da população, de renda, de condições dos domicílios, de estrutura urbana, entre vários outros fornecidos pelo Censo.
Para muitos municípios com poucos recursos técnicos e financeiros, a pesquisa é a única – ou principal – fonte de informações sobre sua realidade. Mesmo municípios com maior capacidade institucional também se apoiam nele para iniciar as leituras territoriais, nas quais embasam todo o processo de elaboração e revisão de planos diretores. Como observou Raquel Rolnik, ex-relatora da ONU e também professora da USP, o orçamento que inviabiliza o Censo é “excelente notícia para quem política pública é negócio, péssima notícia para quem acredita que política pública tem que partir de uma leitura das necessidades”.
Não há possibilidade de estabelecermos rotas de transformação de nossas cidades e saídas para esta ou futuras pandemias sem os dados do Censo. É uma questão vital para a manutenção de um estado brasileiro cujas políticas sejam fundadas no conhecimento científico. Não existe democracia sem o conhecimento sobre sua população.
Em tempo: a lei federal nº 8.184 de 1991 determina que o Censo Demográfico deve ser realizado no mínimo a cada 10 anos. Fica a questão: descumprida a determinação legal, o que acontece com a autoridade responsável, o Presidente da República?
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.