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Um chanceler às avessas: o ruidoso fim de Ernesto Araújo

A cada novo ministro deposto por incompetência, Jair Bolsonaro renova seu argumento de político bem-intencionado, mas refém do sistema
POR Juliana Diniz
Marcello Casal/Agência Brasil

A cada novo ministro deposto por incompetência, Jair Bolsonaro renova seu argumento de político bem-intencionado, mas refém do sistema

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Quando se candidatou ao cargo de Presidente da República em 2018, Jair Bolsonaro era um político experiente, com décadas de atividade parlamentar. Apesar de uma biografia ligada ao baixo clero da Câmara dos Deputados, o Bolsonaro candidato prometeu renovação e uma batalha moral contra a “velha política”. A seu favor, dois fatores contavam. O primeiro: nunca havia assumido a tarefa de gerir, no Executivo, a máquina administrativa do estado. O segundo: o desejo de apostar na agenda anti-corrupção já havia sido, por anos, internalizada na cabeça dos brasileiros graças às midiáticas movimentações da Lava Jato. Foi assim que Bolsonaro, fruto de uma convergência histórica única, se elegeu e pôde montar um exótico corpo de ministros. Ernesto Araújo, que respondia pela pasta das Relações Exteriores (ou responde, pois o anúncio de sua saída ainda não é oficial), era um deles.

Araújo logo se revelou um chanceler one of a kind: um diplomata antidiplomacia. Mergulhado em teorias conspiratórias e severamente comprometido pela proximidade com a ideologia tresloucada do olavismo, o chanceler logo se revelou uma ameaça para qualquer senso de institucionalidade que pudesse persistir inspirando um órfão Itamaraty. 

Ao contrário de outros espaços do Poder Executivo federal, o Itamaraty sempre gozou de certa distância protocolar dos bastidores da política partidária. Uma instituição moldada, assim como as Forças Armadas, por um rigoroso senso de hierarquia e por protocolos seculares: diplomatas são, por definição, seres escorregadios, que precisam ter a habilidade de conversar e construir pontes apesar das preferências e das idiossincrasias dos governantes de plantão. Uma virtude, não um defeito. Educado para o conhecimento profundo da realidade e da histórica e para um código de comportamento exemplar, diplomatas são fundamentais para a construção estratégica de rotas internacionais que possam beneficiar os interesses de estado mais do que os interesses de governo. Tudo que Araújo não tinha intenção ou capacidade de fazer.

Foi investido por um governo subversivo, sem pudor de desmantelar uma instituição cujo passado de respeitabilidade foi construído desde as bem-sucedidas empreitadas do Barão do Rio Branco. Foi assim que Araújo violou o princípio do não-alinhamento automático ao se abraçar com o trumpismo, tensionou a tradição pacifista do Brasil ao insuflar um conflito com a Venezuela e dinamitou toda a interlocução com o maior parceiro comercial brasileiro: a China. Como diplomata anti-diplomacia, Ernesto Araújo sempre se deixou seduzir por exotismos. Ansiava o retorno a um passado nostálgico. Imaginava-se como um templário movido pela guerra santa de defesa do cristianismo, orientava a atuação do Itamaraty contra o globalismo, imaginando-se um honrado guerreiro voltado a reconstruir um medievo onde Igreja e Estado se imiscuíam em interesses difusos, sem delineamentos claros. Um homem pré-moderno, reacionário raiz, delirante de atirar pedra na lua e nos empurrar ladeira abaixo. Ou melhor: delirante de atirar-se ao fogo em nome de uma guerra santa.

Saiu como convém ao bolsonarismo: atirando em inimigos imaginários, chamando briga com o Senado, alardeando virtudes morais. Declarou, no Twitter, não ceder a interesses escusos ligados ao leilão do 5G. Assim como Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, foi-se com o discurso de derrota frente ao desafio comum: a corrupção institucionalizada.

Nem todos os ministros saem com a mesma deferência. Os defenestrados, como Santos Cruz e Moro, vão-se afugentados pela algazarra da militância digital que ama odiar: reputações são destruídas sem preocupação com passados ou patentes. Os bolsonaristas queridos, saem combalidos, mas com outro discurso. A performance do mártir dos ministros mais próximos de Bolsonaro tem lá seu método. Não caem por serem maus soldados, mas por exaustão da tropa, sem que isso represente o fim da guerra. E digo isso pensando não nos peões-ministros, mas em Jair Bolsonaro e 2022.

Porque, no ano que vem, será preciso convencer o eleitor que o caos da gestão federal se deu não por incompetência presidencial, mas porque as mãos do benfeitor estiveram atadas pelas garras do sistema: Congresso Nacional, Imprensa, Ministério Público, Supremo Tribunal Federal. A lista é tão extensa quanto variável, a depender do flanco que estiver descoberto.

A  saída de Ernesto Araújo é, para o Brasil, motivo de alívio imediato. Para Jair Bolsonaro, em contrapartida, é mais uma carta na manga para usar no próximo horário eleitoral. 

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.