Bemdito

Politização (ou bolsonarização) das PMs: política nos quarteis ou o militarismo na política?

Na última parte da série, uma análise sobre como a militarização altera a constituição simbólica de nossa sociedade
POR Monalisa Torres
(Foto: Reprodução TV Brasil)

Em coautoria com Lara Abreu*

Desde o final de agosto temos convidado você, leitor(a) do Bemdito, a refletir conosco sobre a politização (ou bolsonarização) das polícias militares e eis que chegamos ao derradeiro artigo da série com a sensação de que a discussão está longe de um desfecho.

A tentativa frustrada de um (auto)golpe, dada a não adesão (massiva) das polícias militares estaduais nas manifestações antidemocráticas de 7/9 e o posterior recuo forçado do presidente, após a escalada de tensões com membros da suprema corte, resumem bem a imagem do governo Bolsonaro até aqui. Um governo politicamente inábil, sem agenda positiva, dependente “da blindagem” do Centrão e cujo presidente, preocupado apenas em manter-se viável eleitoralmente para 2022, recorre frequentemente a estratégias populistas para garantir o apoio das massas.

No último dia de setembro, nos deparamos com imagens vinculadas pela mídia do Presidente durante um evento realizado em Belo Horizonte, ao lado de uma criança, por volta dos seus seis anos de idade, trajada com a farda da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e portando um fuzil de brinquedo. Durante o evento, o menino ainda realizou flexões, no meio do palco, para a alegria dos presentes. O Presidente, em seu discurso, fez questão de cumprimentar os pais do garoto e agradecer o exemplo de “civilidade, patriotismo e respeito”.

Para além do fato de o Presidente talvez nunca ter lido o Estatuto do Desarmamento, que em seu artigo 26 proíbe a fabricação, venda, comercialização e importação de brinquedos, réplicas e simulacros que possam ser confundidos com armas de fogo ou o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhes garante a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, a imagem de uma criança empunhando a réplica de um fuzil e realizando flexões é muito representativa de uma noção de “civilidade” que se faz pelo uso da violência e de uma instituição policial que se compreende como, tão somente, uso da força. 

Por isso, entendemos que discutir sobre a politização (ou bolsonarização) das policiais militares exige um debate ampliado sobre a militarização da sociedade e da política, assim como a politização das forças de segurança pública e das Forças Armadas (FFAA).

Militarização da Sociedade e da Política
A defesa do armamento da população sempre foi uma das principais pautas encabeçadas pelo Presidente da República, desde quando ainda era deputado federal. Não custa lembrar o símbolo mais utilizado por Bolsonaro e sua claque: “arminha com a mão”. No seu alvo está o Estatuto do Desarmamento, o qual já sofreu diversas modificações (via decretos), desde que foi eleito, tais como uma maior flexibilização para o porte de armas, assim como a ampliação da lista de profissões autorizadas a possuírem arma de fogo. 

Não à toa, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2021, houve duplicação no número de armas de fogo nas mãos de civis em apenas três anos: uma arma a cada 100 brasileiros. Em 2020 foram registradas 186.071 novas armas, um aumento de 97,1% em relação a 2019. Em 2019, o Instituto Sou da Paz já alertava para o aumento na quantidade de registros ativos de colecionadores, atiradores e caçadores (CCAs, como são conhecidos). Aquele ano havia fechado com 396.955 CCAs, aumento de 50% em relação a 2018, sendo 20.178 atiradores, 114.210 colecionadores e 82.567 caçadores. 

Em agosto deste ano, segundo a Folha de S. Paulo, durante uma conversa com apoiadores em frente ao Palácio do Planalto, o Presidente afirmou: “tem um idiota que diz ‘ah, tem que comprar feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”. Na sexta-feira (01 de outubro), o Presidente voltou a se utilizar do mesmo comparativo: “Quando alguém invadir a tua casa, dá tiro de feijão nele”. Mais uma vez Bolsonaro parece governar apenas para uma pequena parcela da população que tem feijão na mesa e condições econômicas e emocionais para possuir um singelo fuzil em seu armário. 

Não podemos esquecer o empenho do Presidente da República na implantação do modelo cívico-militar em escolas de educação básica como se a adoção de um padrão comportamental mais rígido fosse o “óleo de Lorenzo” para todos os problemas da juventude. Em reportagem realizada pelo Brasil de Fato, em 2019, diversos especialistas apontaram o autoritarismo, o cerceamento de professores e o porte de arma dentro das escolas como alguns dos problemas encontrados neste modelo. 

Essa progressiva militarização da sociedade vem acompanhada da intensificação de pautas militaristas na política, a partir da defesa de projetos de lei diretamente vinculados aos interesses das forças de segurança pública e FFAA. A isenção dos agentes de segurança pública e militares das FFAA de punição em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o famoso “excludente de ilicitude” e alterações para tornar as polícias estaduais mais independentes das decisões dos governadores, são alguns exemplos. 

A politização das forças de segurança pública e FFAA
O crescimento da participação de agentes de segurança pública e membros das FFAA nas disputas eleitorais pode ser um dos desdobramentos dos fenômenos citados acima.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FBSP), 25.452 policiais e membros das FFAA se candidataram nas eleições realizadas entre 2010 e 2020; 1.860 conseguiram se eleger entre 2010 e 2018. O Instituto Sou da Paz verificou um aumento de 950% no número de agentes de segurança pública ou militares das FFAA eleitos, na mesma série histórica analisada pelo Anuário, para os cargos de deputado. O diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, chama atenção para o fato de que policiais civis e federais obtém mais êxito nas eleições do que policiais militares, mas estes últimos têm ganhado um destaque maior nas eleições para deputado estadual, afinal não podemos esquecer que as policiais militares são descentralizadas, ou seja, cada Estado possui sua força policial.  

Outro ponto interessante abordado nas duas pesquisas é a consolidação das candidaturas em partidos de direita e centro direita, acompanhada por uma redução significativa do número de candidatos em partidos de esquerda, tendo o Partido Social Liberal (PSL) alcançado, nas eleições de 2020, a marca de 786 candidaturas. 

A pesquisa do Instituto Sou da Paz alertou para os riscos que esse processo de politização das policiais pode trazer tanto para a política como para a corporação, enquanto instituição estatal armada e balizada na hierarquia e disciplina. Dentre os pontos de risco considerados, um diz respeito à instrumentalização da atividade policial para fins políticos, como o uso, durante as campanhas eleitorais, de símbolos e insígnias das corporações. É emblemático o caso do candidato a deputado estadual pelo Patriota, Capitão Assumção, que, apesar de afastado há mais de 10 anos da atividade policial, utilizou uniforme e símbolos da PMES em sua campanha eleitoral. 

Outro problema é a (eventual) quebra da hierarquia e disciplina, elementos característicos dessas organizações. Nos casos, por exemplo, em que comandante e comandado são oponentes políticos ou ainda em que agentes de segurança são chamados a atender ocorrências de adversários, concorrentes ou desafetos políticos, há ameaça de insubordinação ou risco de abusos e irregularidades no exercício das atividades policiais. 

Por fim, mas não menos importante, a pesquisa alerta ainda para os perigos de motivações (e personalidades) políticas encorajarem movimentos reivindicatórios e grevistas, que têm se intensificado nas policiais militares e, no limite, desestabilizar mais ainda o processo de controle das polícias. 

Motins e política: o caso cearense
Esse debate tem sido colocado no centro do palco em razão dos sentidos e desdobramentos dos recentes motins das PMs no Ceará.

O primeiro, ocorrido em 2011/2012, às vésperas de ano eleitoral, fez o governador, na época, Cid Gomes (PSB), refém das reinvindicações dos PMs. Como resultado, algumas pautas dos militares foram atendidas (reajuste salarial e de carga horária de trabalho além de anistia). Mas um dos desdobramentos mais expressivos, do ponto de vista do jogo político, foi a emergência de uma nova liderança política: Capitão Wagner. 

O líder do movimento paredista, Capitão Wagner, que já havia concorrido, em 2010, a deputado estadual pelo PR, teve ascensão meteórica na política cearense. Naquele ano (2012), foi eleito vereador de Fortaleza com votação recorde. Dali em diante, foi campeão de votação em todos os cargos no legislativo a que concorrer: deputado estadual (PR) em 2014 e federal (PROS) em 2018. 

À reboque do sucesso de Wagner, outros representantes políticos organicamente ligados aos militares também ascenderam ao cenário político cearense: Cabo Sabino, deputado federal em 2014; Sargento Reginauro, vereador em 2020 e Soldado Noélio vereador em 2016 e deputado estadual em 2018.

Mais recentemente, em fevereiro de 2020, também às vésperas das eleições municipais, outra greve de policiais sacudiu o palco de disputas políticas no Ceará e motivou a abertura de uma CPI na Assembleia Legislativa do Ceará (ALECE). A “CPI do motim”, que iniciou seus trabalhos em 31 de agosto de 2021, visa investigar o papel das associações de militares na organização dos movimentos paredistas de 2020. 

Cabe salientar que durante o motim de 2020, tanto o presidente quanto figuras do governo, como o então Ministro da Justiça Sérgio Moro e o comandante das Forças de Segurança Nacional, coronel Aguinaldo de Oliveira, elogiaram os PMs amotinados, o que indicou uma demonstração de endosso à indisciplina e à politização nos quartéis.  

E, assim, chegamos a uma encruzilhada. O que veio primeiro? A politização das policiais e das FFAA ou a militarização da política e da sociedade civil? E mais, quais os riscos desses processos para a estabilidade da democracia? 

O que conseguimos concluir é que, concordando com a fala do vice-presidente Hamilton Mourão, “se a política entra pela porta da frente de um quartel, disciplina e hierarquia saem pela porta dos fundos”, ainda que saibamos que as FFAA não têm cumprido o que mesmo diz.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.