Bemdito

Politização (ou bolsonarização) das PMs: risco institucional ou jogo político? #1

Primeiro ensaio da série que vai analisar a relação entre as polícias militares e o bolsonarismo
POR Monalisa Torres

Em coautoria com Lara Abreu*

“Sejamos, junto aos irmãos brasileiros, inspiradores de paz, união, liberdade, democracia, justiça, ordem e progresso, que o nosso povo tanto almeja e merece, dedicando-nos, inteiramente, à defesa da soberania nacional e ao bem do nosso amado país”.

Esse foi o trecho do discurso feito pelo Comandante do Exército Brasileiro (EB), Paulo Sérgio Nogueira, durante a cerimônia comemorativa ao Dia do Soldado, na última quarta-feira (25 de agosto), em Brasília.

Ao lado do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) e demais autoridades civis e militares, o comandante utilizou-se da vida e obra do Marechal Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do EB, para sinalizar que o Exército não estaria disposto a embarcar numa aventura golpista. Paulo Sérgio optou por moderar o tom e reafirmar o compromisso do Exército com a Constituição e os valores pátrios.

Ao mesmo tempo em que o discurso buscava apaziguar os ânimos institucionais numa semana em que a escalada de tensões entre o presidente da República e o Supremo Tribunal Federal (STF) atingiu níveis inimagináveis, o discurso do comandante também exaltava as habilidades de Caxias como militar e estadista, ressaltando uma atuação “marcada pela conciliação, pela superação de posições antagônicas, e, sobretudo, pela prevalência da legalidade, da justiça e do respeito a todos”.

Conhecido como “Conselheiro da Paz” e “Pacificador do Brasil”, o comandante ainda lembrou a todos os ouvintes o trabalho de Caxias no “restabelecimento da paz, na restauração da lei e da ordem e na manutenção da integridade do país”. Disse ainda que é um “indelével exemplo de honestidade, ética e postura pública” em seu trabalho de “pacificação dos conflitos internos que ameaçavam a unidade nacional” e em “campanhas externas em defesa do Brasil”.

Estaria o comandante dando uma indireta ao presidente? Conhecido por adotar, em seu discursos, elementos que suscitam afetos negativos (antagonismo, disputa, ódio e violência) como método, o presidente há tempos tem demonstrado que da mesma forma que não teve tato para administrar sua carreira militar, também não o possui como estadista.

A conjuntura brasileira atual nos mostra um país com problemas para gerenciar a crise de saúde ocasionada pela pandemia do novo coronavírus, somada ao aumento do desemprego, da inflação, do preço dos combustíveis e, mais recentemente, da energia. Em queda, somente o Produto Interno Bruto (PIB) e a popularidade do “mito”, que a cada dia joga mais gasolina na fogueira dos ódios políticos como forma de esquivar-se das críticas ao seu governo.

As perdas políticas do presidente têm se acumulado neste mês que se finda: a rejeição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ao pedido de Bolsonaro pelo impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes; a rejeição do Plenário da Câmara dos Deputados à PEC do voto impresso; a resistência do Senado em votar a indicação de André Mendonça para uma cadeira no STF; e a desistência do próprio presidente, após conselhos de assessores, em entrar com pedido de impeachment ao também ministro do STF, Luís Roberto Barroso. Soma-se a tudo isso o discurso do comandante do EB, mostrando que a radicalização bolsonarista não tem encontrado eco e coesão nas Forças Armadas.

O que restou ao presidente? Insuflar uma outra categoria de militares para compor a sua infantaria (ou guarda pretoriana?) na guerra ideológica que trava no país: as Polícias Militares. O combate já tem dia marcado: as comemorações pelo 7 de setembro.

Manifestações de 7 de setembro

A preocupação não é à toa. Há relatórios da Inteligência que sinalizam para chamamentos, principalmente através de redes sociais, feitos por militares da ativa e da reserva, em diferentes estados, para adesão aos atos de 7 de setembro. O Exército, que vem monitorando as Polícias Militares, alerta para o risco de rompimento da cadeia de comando.

No último dia 23, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), informou à Rádio CBN que o comandante da Polícia Militar Aleksander Lacerda havia sido afastado por indisciplina, após se utilizar da sua página no Facebook para convocar colegas para as manifestações contra o STF e em defesa de Bolsonaro no próximo 7 de setembro.

Reportagem do Estado de São Paulo mostrou que o comandante Aleksander Lacerda se utilizava da rede social para criticar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o governador João Doria.

O fato é que policiais militares da ativa são proibidos pelo regulamento da corporação de realizar manifestações políticas. No entanto, é preciso, ainda, destacar a influência que o efeito Pazuello pode ter dado a alguns militares, visto que a falta de punição ao general pode ter deixado membros dos oficialatos militares mais confiantes em manifestar suas opiniões políticas.

A participação de policiais militares da reserva e da ativa nas manifestações do 7 de setembro deve ser motivo de apreensão pelo risco institucional à própria manutenção da corporação policial. Afinal, estamos falando de PMs armados, protestando e sendo contidos por outros PMs armados.

Mas como chegamos até aqui?

Caro(a) leitor(a), proponho um exercício reflexivo para considerarmos alguns elementos importantes na produção da crise que assistimos agora.

Desde o início do seu mandato, Bolsonaro vem investindo na cooptação de militares. Como já discutido em outra ocasião, na ausência de uma base política sólida que lhe garanta o mínimo de estabilidade, o presidente insiste na instrumentalização das FA.

Para além dos quadros qualificados e leais, as FA também poderiam servir de escudos em momentos de tensionamento com outros Poderes ou mesmo para pressionar atores e instituições que eventualmente desagradassem o chefe do Executivo.

No entanto, a despeito de figuras leais a Bolsonaro e ao bolsonarismo, pertencentes aos quadros das FA, e que ocupam cargos importantes do governo (a exemplo do general Augusto Heleno e do comandante da Aeronáutica), a instituição não parece disposta a ultrapassar os limites para uma ruptura institucional como parece querer o presidente.

Fora isso, a própria estrutura centralizada, hierarquizada e fundamentada num forte sentido de disciplina tem ajudado a frear arroubos antidemocráticos dentro das tropas.

O mesmo não se pode dizer das Polícias Militares.

Polícias Militares: o que são e para que servem

Por definição, Polícias Militares são instituições de Estado responsáveis principalmente pela manutenção da ordem pública nos Estados, ou seja, pelo policiamento ostensivo. Segundo a Constituição Federal, juntamente com os Corpos de Bombeiros Militares, são forças auxiliares e reserva do Exército.

Isso significa dizer que somente em casos de grave convulsão social, declarações de estado de guerra ou agressão armada estrangeira é que as instituições militares estaduais poderão ser mobilizadas.

Quando comparadas às FA, as PMs são descentralizadas nacionalmente (lembrando que cada unidade da federação conta com a sua própria força policial, cujo comandante em chefe é o governador). E, por terem se profissionalizado e se tornado mais autônomas, as PMs são mais difíceis de controlar. Daí que estudiosos entendem as PMs como instituições mais frágeis. Não à toa, quando se fala sobre as “milícias cariocas” logo se refere a elas como “a banda podre das PMs”.  

Historicamente, as PMs são herdeiras do modelo de policiamento que se forjou durante a ditadura militar e que vê o cidadão como um inimigo em potencial. Por isso, muito se discute sobre os protocolos (pouco transparentes quanto ao exercício profissional e fiscalização de suas atividades) que nos tem relegado altos índices de letalidade.

Outro importante elemento que tem marcado historicamente as PMs é de caráter estrutural. Tem a ver com as precárias condições de trabalho e as disparidades no que diz respeito ao plano de cargos e carreiras de/entre oficiais e praças (cabos, soldados, sargentos, subtenentes), que são a ponta da lança das polícias. 

Politização da PM


A conjunção desses e outros fatores contribui para que tenhamos a polícia que mais mata, mais morre e mais se mata. Afinal, os dados estatísticos sobre suicídios de policiais militares têm se mostrado bem consideráveis anualmente. Tudo isso tem suscitado o debate sobre a “desmilitarização” das Polícias Militares, assim como o “ciclo completo de polícia”.

As policiais militares já têm sido usadas por parlamentares bolsonaristas como forma de ataque aos governadores na gestão da pandemia. Em março, a morte do policial Wesley Soares, da PMBA, após um surto psicótico, foi utilizada pelos deputados Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para estimular um motim policial no Estado.

O próprio presidente já vem há algum tempo flertando com as policiais militares, participando ativamente de cerimônias de formatura e concedendo um pacote de benefícios, como créditos imobiliários e até mesmo uma nova lei orgânica.

Eis o X da questão. Se uma instituição que tem poder de fogo, como é o caso das PMs, fundada originalmente na disciplina e hierarquia, se deixa contaminar pela política (ideológica, inclusive), como fica a cadeia de comando? A quem obedecem? E quais os desdobramentos disso para a sociedade civil e o Estado?

É justamente nessa brecha que o bolsonarismo tem encontrado espaço e utilizado as Polícias Militares como instrumento do seu jogo político.

*Lara Abreu é doutoranda em Sociologia pela Uece, mestre em Políticas Públicas e pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida/Uece).

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.