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Forças Armadas e política no Brasil #2

Os limites entre a aventura golpista de Bolsonaro e a possível mácula à imagem dos militares do alto escalão
POR Monalisa Torres
Foto: Marcos Corrêa/PR

Os limites entre a aventura golpista de Bolsonaro e a possível mácula à imagem dos militares do alto escalão

Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br

O desenho institucional brasileiro é o produto da combinação da proporcionalidade, do multipartidarismo e de um presidencialismo com grandes poderes, mas “mitigado” pelo controle parlamentar. Esse modelo resulta no que o cientista político Sérgio Abranches denomina “presidencialismo de coalizão”. A consequência prática desse arranjo é que o presidente demanda base de apoio majoritária no legislativo, sem a qual o governo enfrentaria o que Abranches chama de “paralisia decisória”.

Historicamente, parte desse apoio é costurado pelo partido do presidente, que oportuniza pontes com as demais legendas a fim de constituir base majoritária no Congresso para aprovar e executar políticas públicas. Daí que o processo comum da formação das coalizões governativas é a negociação e partilha de poder através da distribuição de pastas e cargos aos aliados.

O presidente Bolsonaro sempre teve uma relação bastante conflituosa com os partidos e, principalmente, com o Congresso. Rompeu, inclusive, com o PSL, legenda que o abrigou nas eleições de 2018. Eleito com um discurso de que não se renderia à “política do toma-lá-dá-cá”, preferiu confiar o comando de alguns dos cargos mais importantes ao estamento militar, que, por força constitucional, não tem lastro no sistema partidário. Ao contrário, possui uma estrutura e lógica completamente diferentes de funcionamento: é uma instituição opaca, verticalizada, hierarquizada e, portanto, divergente do perfil das instituições democráticas (balizadas na transparência e em relações horizontais).

Na falta de uma base política estável que lhe garanta segurança para governar, Bolsonaro tem insistido na instrumentalização das Forças Armadas (FA), transformando-as em uma espécie de “partido do presidente”. Para tanto, investe na cooptação de oficiais. A atração dos militares para compor seu governo tem lá seus motivos: blindar o presidente da pressão do Congresso (contra um eventual impeachment), contar com quadros treinados e leais ao presidente (basta lembrar a fala de Pazuello sobre a política adotada pelo Ministério da Saúde na pandemia: “um manda e o outro obedece”) e se beneficiar do prestígio das FA frente a opinião pública (as FA, juntamente com a Igreja, são as instituições que possuem maior grau de confiança entre os brasileiros, constatado em pesquisas de opinião).

Na análise do cientista político Octávio Amorim Neto, esse processo de cooptação se deu através de dois aspectos: um material e outro ideacional. O material tem relação com a atenção a demandas como aumento salarial; ampliação do orçamento da Defesa, apesar do contingenciamento em outras áreas do governo; reforma da carreira; abono para militares que exercem funções na máquina administrativa federal, dentre outros. Quem não se lembra da denúncia feita, em fevereiro deste ano, acerca dos gastos milionários (a propósito, com dinheiro público) com leite condensado, cerveja e picanha? Quanto ao aspecto ideacional, este é associado a releitura da “luta anticomunista”, que moveu as ações dos militares na década de 1930 (posteriormente reavivado com o “Projeto Orvil”, na década de 1980), mas que agora converteu-se em antipetismo.

No entanto, no que parecia ser alinhamento e boas relações entre presidente e FA, surgiram algumas faíscas.

Em novembro de 2020, o então comandante do Exército, general Edson Pujol, em live com a participação do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, afirmou: “não queremos fazer parte da política e nem deixá-la entrar nos quartéis”. O posicionamento do comandante desagradou Bolsonaro, principalmente depois da recusa de Pujol em se manifestar contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabou por devolver os direitos políticos de Lula, em março deste ano. Bolsonaro desejava que Pujol reeditasse o que Villas Boas representou em 2018.

Em março de 2021, o chefe do Departamento Geral de Pessoal (DGP) do Exército, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, em entrevista ao Correio Braziliense falou sobre a política de saúde adotada pelas FA que, alinhada aos protocolos recomendados pela OMS no combate à pandemia, reduziu significativamente a mortalidade nas tropas, bem abaixo do que se observa no restante do país.

As falas dos generais incomodaram Bolsonaro, que queria a submissão das FA e pediu, então, a demissão dos generais. A recusa do general Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, engrossou o caldo.

Paralelo a isso, a pressão política sobre o presidente aumentava: queda da aprovação de governo, sobretudo em razão do desastre na condução do enfrentamento à pandemia; o alerta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sobre a possibilidade de acionar “remédios amargos”, caso o presidente não mudasse de comportamento; a pressão do Senado pela demissão do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; a carta do setor financeiro cobrando maior empenho do presidente em relação à política de vacinação; e o retorno de Lula à arena política.

Nesse contexto, do lado das FA, parece haver um certo constrangimento por parte do alto oficialato (da ativa), receoso de que os erros do governo maculem a imagem da “competência técnica” tão valorizada pelos militares. Fora isso, os generais deram sinais de que não estariam dispostos a embarcar na aventura golpista do presidente – o que foi o estopim da demissão do ministro da Defesa (29/04), bem como da renúncia conjunta dos três comandantes das FA (30/04). Isso ficou claro na fala de Azevedo e Silva quando da saída do ministério: “Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.

Na última sexta-feira (23/04), em entrevista para o programa do apresentador Sikeira Jr, Bolsonaro voltou a se referir às FA como “meu Exército”, afirmando o desejo de mobilizar militares contra políticas restritivas de combate à pandemia adotadas por estados e municípios.

“Se tivermos problemas, nós temos um plano de como entrar em campo. Eu tenho falado, eu falo ‘o meu [Exército]’, o pessoal fala ‘não’… Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. O nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido”, disse Bolsonaro.

A fala gerou constrangimento entre o alto escalão militar, que destacou o papel constitucional das três forças e questionou o uso político da função presidencial de comandante-em-chefe das FA.

Nos regimes democráticos, o papel destinado aos militares deve ser claro e limitado à sua área de atuação, qual seja, a defesa do Estado – em outros termos, manter relações institucionais com o governo, sem alinhamento ideológico ou envolvimento em questões propriamente políticas. O que vem acontecendo no governo sob o comando de Bolsonaro é que a participação ampliada de militares em postos do executivo federal tem resultado no que Octavio Amorim chama de “processo de militarização de uma democracia ainda não plenamente consolidada”. O efeito imediato é o de reduzir o controle civil sobre os militares, aspecto que dificulta a manutenção da transparência do/no regime democrático.

No entanto, se as FA parecem mais resistentes à interferência política do presidente Bolsonaro, o mesmo não se pode dizer das Polícias Militares. Mas esse é tema para outro artigo.

Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.