Bemdito

Como minha mãe me criou feminista

A ambiguidade de nossas mães prova que uma mulher feminista sempre nasce do desejo de subverter uma dominação já conhecida
POR Mariana Marques

A ambiguidade de nossas mães prova que uma mulher feminista sempre nasce do desejo de subverter uma dominação já conhecida

Mariana Marques
marianamarquesb@gmail.com

A Rita minha avó passou num concurso dos Correios e lá fez carreira; mais uma alma feminina provando que mulher poderia dar conta de si sem a companhia corporal de um homem. Digo corporal porque ele viveu de alguma maneira para sempre ao lado dela, e até os últimos dias de sua vida ela falava nele como se tivesse morrido na semana anterior. 

Voltei mais de 70 anos no tempo pra que você imagine o tanto de barreiras que essa mulher teve de quebrar para criar suas três filhas, que tinham nascido uma encarrilhada da outra. Seis anos depois de perder o marido, mudou-se para Russas, e depois para Fortaleza, com a família de três meninas. 

Mamãe cresceu em um ambiente cheio de amor e proteção, pois Rita minha avó tinha a sorte de ter muitos irmãos, que foram mais que tios pra Rita minha mãe. Um, em especial, mudou a vida de todas: Firmino, o mais velho, concedeu a primeira moradia, as recebeu em Fortaleza e, pela mão, ajudou-as as desbravar a cidade que em 1952  já era imensa para aquela família dos Inhamuns. 

Quando olho para todos esses elementos e situo-os no tempo, sou capaz de perdoar minha mãe por todos os sinais de machismo estrutural que rondavam a casa onde fui criada. Na verdade, quando paro de verdade para refletir, não há nada que implique perdão, porque simplesmente foi o que ela conseguiu fazer na época. Você deve estar matutando por aí o que foi que esse machismo estrutural significou, e eu lhe digo. Respire. 

Meu irmão podia dormir na casa da namorada. Nós não. 
Meu irmão podia pegar o carro e sair de casa 4h da manhã para às 5h começar a mergulhar num açude sabe-se lá onde. Deixava bilhetes. Nós não. 
Meu irmão podia viajar. Nós não. 
Meu irmão podia pegar uma moto e ir visitar a avó na Prainha. Nós nem chegamos a sonhar com essa liberdade. 

Hoje entendo. Não era só ela (ou meu pai) que operava essa cadeia de normas divididas pelo gênero. Homens já nasciam pré-destinados a serem donos de si. Em contraponto, Jonas não gozava de metade das regalias que Milena e eu, as meninas, tínhamos. Então acho que empatou. E sigamos. 

Quando penso na mulher que tenho me tornado, ouço, porém, a voz mais forte de minha mãe até hoje: “estude, estude muito, que é pra não depender de homem”. E eu entendia que aquela máxima me dizia que eu tinha que ter liberdade intelectual, mesmo que um dia eu vivesse em uma casa cujas contas fossem pagas por meu futuro companheiro. Tinha também uma triste, que me dava um certo medo: “trabalhe, viu? Se você não trabalhar, você vai ter que pedir dinheiro ao seu marido pra comprar absorvente”. Ah, aquilo me matava. Deve ter sido com essa ameaça que ela me fez ter saco pra aprender movimento retilíneo uniformemente variado, equação do segundo grau ou oração subordinada adjetiva explicativa. Eu estudava pra me libertar. 

Já ficando adulta, vieram outros ensinamentos disfarçados de preocupação: “você tá feliz? Fulano é delicado com você?” E perguntava do namoro. Ao menor sinal, se eu titubeasse, ela dizia: “Mariana, eu te pari. Olhe no meu olho”. E mesmo que eu não dissesse tudo, ela lia e sabia o que me dizer pra evitar: 

– homem ciumento 
– homem grosseiro 
– homem sovina 

Anotado. Nem sempre eu conseguia seguir, mas a voz dela sempre perturbava meu juízo nas horas do perrengue. Também, segundo a lei imposta por ela, era proibido ficar casada sem estar feliz e transar sem querer (essa última ela só me disse depois, porque a verdade é que a coitada tinha pavor, no começo, que eu fosse deflorada precocemente). 

Em 2021, com uma série de auxílios pedagógicos decorrentes da luta feminista (a que sou diariamente grata), sou capaz de diferenciar mansplanning e gaslighting, enxergar de longe a empáfia masculina antes que um homem abra a boca. E devo absolutamente tudo a ela. Não sei até hoje como um ambiente tão opressor criou uma mulher como Rita (opressor inclusive com ela, que viveu em um regime severo, ainda que minha avó fosse extremamente libertária nas ideias). Não sei como ela é capaz de ser tão ácida e amorosa ao mesmo tempo, já que me liga 2 vezes por dia pra saber que horas meu marido chega e o que é que ele vai jantar, sabendo que não tem tempo nem para respirar durante a jornada. É o amor dela que junta tudo arrumado e separado tupperwares (que temos 24h pra devolver sob pena de suspender o serviço), bandejas e toalhas de rendinha, para que ele sente à mesa e faça uma refeição bonita depois de um dia de trabalho. 

É a mesma Rita. Complexa, como cada um de nós, uma dicotomia metamórfica. Mas que nunca me deixou pensar que eu era enfeite de seu ninguém. Não era propriedade, não era investimento, não era uma coisa. Era um ser pensante e potente. Era MULHER. 

Mariana Marques

Publicitária e artista plástica.