Bemdito

Atenção: você também será censurada!

Substituir juízes e um direito baseado em provas pelas hostilidades do tribunal da internet é mesmo uma estratégia vantajosa para a luta feminista?
POR Paula Brandão

A imagem que ilustra essa coluna trata-se da tela Teresa sonhando, 1938, de Balthus. Em exposição recente no Metropolitan Museum – Met, Nova York, a obra foi alvo de uma petição para que fosse retirada. 8.700 almas ergueram suas canetas para assinar esse manifesto. A motivação seria a seguinte: a menina aparece em pose sugestiva. A matéria do EL País, de Sandro Pozzi, revela que o museu se posicionou pelo entendimento de respeito à expressão criativa e que a missão do espaço é estudar e preservar obras que possam conectar as pessoas com a criatividade, o conhecimento e as ideias.

Pozzi assim descreveu a obra: “A protagonista está recostada em uma cadeira, com uma perna levantada e mostrando sua calcinha. É um quadro que irradia luz própria e pureza. Ao observá-lo, é possível sentir a placidez da jovem em seu sono. A pintura é conhecida justamente pela maneira como capta a inocência da pré-adolescência.” Diante da recusa do Met em retirar a obra, foi sugerido colocar um aviso sobre a perturbação de cenas sexuais. 

No caso analisado, a motivação foi a onda de denúncias de assédio que surgia, naquela ocasião, nos Estados Unidos, e que teve como importante estandarte o #metoo, movimento que trouxe à tona as mais graves denúncias contra os magnatas do cinema norte-americano. Ali todos os diretores foram exaustivamente expostos para que a opinião pública os julgasse pelas suas condutas violentas contra as atrizes.

A psicanalista Elisabeth Roudinesco, em mais recente obra O eu soberano, comenta o caso do quadro de Balthus e o movimento de exposição dos algozes pelos movimentos feministas para perguntar se é possível substituir juízes e um direito baseado em provas por carrascos da internet, emitindo uma opinião pública.

Ela lembra as raízes do movimento francês “Ouse o feminismo”, chefiado por Caroline Hass, que vislumbrava fazer a releitura moral sobre toda a arte e atividade politicamente incorreta: qualquer obra sexualmente sugestiva deverá ser censurada. Pergunto: a censura imposta para uns não poderá se voltar contra nós mesmas? Eu também não poderia ser acusada de escrever algo que merecesse ser censurado, cancelado? Até aonde vai a liberdade de quem cria um texto, uma música ou uma tela?

Causou bastante burburinho, recentemente, o filme Como se tornar o pior aluno da escola, pela cena que mostra um professor chamando dois adolescentes para fazer um sexo oral nele. Trata-se de uma ficção tal qual as novelas em que estamos cansadas de torcer pelo mocinho ou pelas bandidonas como Nazaré Tedesco, que virou meme que serve para quase tudo. Nem por isso, a atriz Renata Sorrah que a interpretou foi perseguida após a sua atuação. O fato de alguém interpretar o papel do ignóbil professor não faz dele um potencial pedófilo.

Tenho uma amiga delegada que, frequentemente, prende pedófilos, e nenhum é artista, são os tiozinhos que parecem inofensivos: um vizinho, um amigo dos pais da criança, um professor. E se isso acontece no cotidiano, por que não pode ser interpretado? Quando assistimos a um filme, série, olhamos uma tela, lemos, estamos refletindo sobre dadas situações que fomentam o debate. Mesmo aquelas cenas que revoltam até nossos estômagos trazem uma possibilidade de abordar a questão criticamente. 

Recorrendo ainda a Roudinesco, ela se refere a um comentário feito a outro filme, mas que vem a calhar para esse: “Nada nos permite afirmar que o cineasta aprova as violências de seu personagem. Muito pelo contrário, toda a encenação é construída como o relato da errância. (…) Não se ganha nada com tal simplificação.”

Em outra esfera da censura, a Pablo Vittar estava no palco do Lolapalooza, pegou uma bandeira de Lula das mãos de alguém na plateia e a ergueu. O TSE, acionado pelo partido do presidente atual, estipulou, por decisão liminar de um de seus ministros, uma multa de 50 mil para todos os demais artistas que se manifestassem politicamente naquele palco. Um evento privado, com uma manifestação espontânea de artistas variados, deveria ser censurado dessa forma? Até aonde chegaremos, munidos das mais sinceras intenções, para decidir o que deve ser visto, assistido, ouvido ou dito?

Recentemente, a ilustríssima Professora Irlys Barreira escreveu sobre o Chico Buarque ter retirado de seu repertório a música “Com açúcar e com afeto”, atendendo aos apelos de críticas feministas que consideravam o teor machista da letra. Ressaltando a capacidade de Chico em revelar em suas músicas as ambivalências de um Brasil múltiplo em comportamentos, ressaltou a importância de reconhecer as diversidades ao invés de ignorá-las. Recorrendo ao pedido que Chico não desatine, a mestra diz:

“Nunca escutei ‘Com açúcar e com afeto’ como apologia da mulher subordinada, antes percebendo nas palavras de Chico o teor irônico de sua arte de compor Amélias já cantadas desde Ataulfo Alves e Mário Lago. Por acaso poderíamos também pensar que Chico dignificou o malandro ou fez apologia à marginalidade infantil na música ‘Meu guri’, ou glorificou a prostituição com a música ‘Folhetim’?” 

 Ratifico: não desatinem! Vou deixá-los refletir sobre o assunto, antes que seja cancelada também! Mas isso já é assunto para outra coluna.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).