Bemdito

Will Smith e as lentes indolentes da branquitude

Um soco em resposta a uma agressão verbal pode significar mais do que uma simples violência?
POR Paula Brandão

* Este artigo foi escrito em co-autoria com Liniane Santos, assistente social e mestra em Serviço Social pela UECE.

O mundo civilizado, branco e colonizado acordou hoje chamando o ator Will Smith de imbecil. Ontem, ao receber seu primeiro Oscar de melhor ator, viu Cris Rock comparar sua esposa Jada Smith com a personagem careca de G.I. Jane 2. Diante de um auditório que sorria em peso da piada dirigida a ela, uma mulher que sofre de alopecia, ele se levantou e deu um tapa na cara de Cris Rock, e disse que tirasse o nome de Jada da sua boca. Vale ressaltar que, em 2016, Chris já havia tecido comentários problemáticos ao boicote proposto por Jada ao Oscar pela pouca representatividade de atores e atrizes negras no prêmio. 

Ao nos posicionarmos contra um pensamento condenatório ao Will Smith – especialmente por não nos considerarmos acima de tudo e todos e incapazes de reagir de modo contundente a uma agressão contra quem amamos – fomos confrontadas nas redes sociais por pessoas que diziam que Will era um homem incapaz de sustentar a sua integridade de ganhador de prêmio. Que teria sido perfeito se ele tivesse recebido seu Oscar sem violência. 

Para essas mulheres brancas ele foi machista em defender a esposa usando da violência física, e teria sido ótimo a presença de um ator negro, calado diante do desrespeito à sua esposa e, recebendo, docilmente, seu título de melhor ator. Vale ressaltar que Will confrontou com seu tapa um sistema capitalista hollywoodiano, branco, colonizado, que representa o império norteamericano. 

Quando falamos da crise do termo alteridade, é no sentido de quão difícil é, para certas pessoas, entenderem a proporção da dor da outra, especialmente quando se trata das questões que não se sente na própria pele. Vimos mulheres, todas brancas, defendendo que nada justifica a agressão e nos perguntamos: a agressão verbal contra a mulher aplaudida pelo auditório seria menor que o tapa?

Vivemos num mundo com pessoas egocêntricas que pensam que tudo se trata dos seus próprios umbigos, que veem a sociedade a partir de suas próprias lentes. Essas pessoas só enxergaram uma cena de brutalidade. Algumas mulheres argumentaram que ficaram preocupadas se, num acesso de raiva, o Will não poderia agredir, inclusive, a própria Jada.

A ideia do negro potencialmente agressivo, perigoso, não tem como não vir à mente nesse momento, em contraposição, a um estamento supostamente superior, que ensina as normas sociais para esses homens negros e incivilizados. Ninguém conseguiu enxergar humanidade em Will. Não esperamos mais que as pessoas se afetem pelas emoções porque tudo deve ser controlado e orquestrado racionalmente. Será mesmo?

Richard Williams personagem pelo qual ganhou o prêmio, seria a trajetória de um herói? O filme narra a história da família Williams com ênfase no personagem dele, pai das atletas Serena e Vênus Williams. Richard passa longe de ser retratado como um herói, ao contrário, mostra as camadas complexas que constituem a existência de um homem negro para quem errar pode custar uma vida inteira, e não só a dele, mas de toda a família.

Quando chamado ao palco para receber a estatueta de melhor ator, Will Smith fez um discurso emocionado sobre o amor pela família e a necessidade de defendê-la e, também, sobre as dificuldades e complexidades que atravessam a carreira de um homem negro na indústria do audiovisual. Sim, Smith falou sobre amor, e também sobre amizade ao mencionar a fala de Denzel Washington sobre o ocorrido instantes antes. 

Will, assim como Richard Williams, nos deu a oportunidade de ver um homem negro para além das lentes da branquitude que, historicamente, estabeleceu na racialização dos corpos negros, os limites dessa humanidade. O medo que parte das pessoas negras sentiu ao assistir o ato de Smith naquele palco, diz respeito a consciência dos lugares aos quais estão resumidos como sujeitos negros. Sabemos que errar não é uma possibilidade se você é negro/a, não à toa ele encerra seu discurso com a frase “espero que a academia me convide para as próximas premiações”. 

Will também deu às mulheres negras, a chance de se verem num lugar inimaginável, como dignas do amor e da proteção masculinos, não de qualquer masculinidade, mas a de um homem negro. Ele reagiu a ridicularização pública de Jada, e o fez sabendo quão caro aquilo poderia lhe custar. Ele que se ressente até hoje, de não ter podido proteger a própria mãe de um pai violento, constituindo um dos seus grandes arrependimentos, não guardará mais um para seu pesar.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).