Bemdito

O espectador da violência

Quando o agressor é uma celebridade, a forma mais poderosa de defesa é chamar para a cena de violência, como cúmplice e testemunha, o público
POR Juliana Diniz
Reprodução Instagram

As imagens de violência praticada por Dj Ivis contra a mulher são fortes. Captadas por câmeras de segurança, mostram a rotina de agressões sofrida por Pamella Holanda. São socos, empurrões, tapas, chutes e todo um gestual de brutalidade que acontece apesar da presença de um bebê e de outras testemunhas.

Nos vídeos, vemos duas pessoas além do casal: uma mulher, que, por vezes, tenta timidamente se interpor entre o agressor e a vítima, e um homem desconhecido. Numa das gravações, ele assiste por alguns segundos a Ivis agredir a mulher na sala para, então, deixá-los, aparentemente desinteressado pelo desfecho.

O comportamento de Ivis não tem nenhuma justificativa plausível. Não há que se discutir se houve ou não violência, apenas apurar responsabilidades. As imagens dão conta de um agressor contumaz, que covardemente impôs a sua companheira em situação de vulnerabilidade uma rotina de desrespeito e humilhações. Para avaliar a gravidade do que ele fez, pouco importa o que ela tenha feito ou dito, a desigualdade forças é notória, pressuposta.

A linguagem do corpo de Ivis é explícita e pode ser lida sem dificuldade: por mais diminuto que seja, ele se vê em uma posição de poder, confortável para ameaçar e maltratar. Por isso a atitude de golpeá-la com uma camiseta ou de sacudi-la enquanto a segura pelos cabelos. São gestos que, mais do que dor, impõem uma profunda degradação moral a quem os sofre. Ele não deseja apenas machucar, tem necessidade de se mostrar como autoridade, inclusive na frente de outras pessoas, que não o constrangem.

Chamo atenção para o comportamento das testemunhas. Ao contrário de muitas mulheres, que sofrem em silêncio, Pamela apanhou diversas vezes na frente de outras pessoas. Uma delas é um homem robusto, alto, que, numa das cenas, teria todas as condições físicas de impedir a selvageria do Ivis. O DJ tentava neutralizar a reação a mulher enquanto a chutava e a sacudia pelos cabelos. O homem-testemunha assistiu a minutos de agressão sem qualquer iniciativa mais enfática, não mostra nervosismo ou preocupação, parece quase indiferente – a prova é que sai, com o passo lento, da sala onde se desdobra a cena.

O comportamento desse homem é o retrato de uma avaliação que não é só dele, mas de muitas pessoas que estão ao meu e ao seu lado. A avaliação social de que a violência doméstica não é propriamente uma violência, mas uma banalidade, um “assunto de marido e mulher”. Quem já não ouviu por aí que uma mulher que apanha deu causa aos socos que recebe, e que não vale a pena mexer no caldo das rotinas alheias?

Uma vítima de violência doméstica merece toda a atenção com a preservação de sua intimidade, de sua imagem, por isso a condução do procedimento para afastá-la do agressor deve acontecer a salvo da curiosidade pública, com acolhimento e responsabilidade. Só a vítima sabe o ritmo, o momento e a forma com que pode relatar o que lhe acontece. O dever de quem testemunha a violência e pode evitar é diverso – aquele homem, assim como Ivis, também merece ser confrontado: afinal, o que você fez para evitar?

Como acontece com todas as mulheres, Pamella já começou a ser julgada pelo fato de ser vítima. Há quem questione o modo da denúncia, a ampla notoriedade que deu aos vídeos em que é agredida, como se seu interesse primário fosse a vingança, o desejo de atrapalhar uma carreira artística, o caminho da celebridade do marido. Pois eu digo que ela foi não só corajosa por se expor, mas inteligente, porque o conflito de fundo entre ela e o marido é sobre poder e domínio.

A forma mais poderosa de reagir à violência, no seu caso particular, era expor o agressor, da forma mais crua possível, para que não só ela, seu bebê e os adultos na sua sala soubessem, mas o público. O público que aplaude seu marido, que aplaude os artistas que mantêm a produtora que impulsiona seu trabalho. Expô-lo como se estivesse num palco, ricamente montado para exibir seus dotes artísticos. Vejam como é belo o artista de vocês, vejam como é “bom e digno”! Só os holofotes voltados à brutalidade seriam capazes de motivar a reação que vimos no último final de semana, o espaço nos jornais, a consternação das celebridades, políticos empenhados.

Assim como Pamella, muitas apanham às vistas não só do agressor, mas de testemunhas que podem evitar o desfecho e que têm o dever de fazer isso. Como li em um card de Instagram compartilhado por minha amiga Paula Brandão, que sintetiza essa ideia, é sempre bom dizer que: “em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher”.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.