Bemdito

Pix lovers: a mistura autofágica de amor e capitalismo afetivo

Na era do Pix, como o capitalismo dita até mesmo o comportamento moderno no campo dos relacionamentos
POR Paula Brandão
Arte: Banksy

Desde que paramos de ir ao banco, tirar saldo e uma graninha, deixamos de encontrar as pessoas nas filas e nas ruas, trocar um olhar, tomar um cafezinho e jogar conversa fora. Mas neste período de isolamento, o capitalismo não se esqueceu de nós: criou o Pix!

Não tem nada mais rápido, eficaz e prazeroso. Faz um Pix? É tão sedutor que você já diz: “Faço!” – e parece mesmo que o dinheiro nem saiu do seu suado trabalho. É quase como uma mágica: fez, pronto, o dinheiro entra. Por falar nesse processo todo, e brasileiro só pensa naquilo, criaram os relacionamentos amorosos pelo Pix. Sim! Queríamos nós que os pobres mortais tivessem a mesma eficácia da transação bancária! 

E foi na escassez de recursos para expressar seu amor malfadado, que um boy bloqueado em todos os canais de comunicação pela mina que estava apaixonado, percebeu que esse instrumento genial tem um quadradinho que cabe tudo: desde o destino do pagamento quanto um belíssimo pedido de desculpas, com um simbólico valor. Sim, deu certo para ele! Essa é a versão mais divulgada. Se fosse um filme, eu diria: volta para o início. 

Meu amigo cabeleireiro, que poderia ser um ótimo analista a cada tesourada, pois corta todos os devaneios da gente em segundos, me deu o Pix dele. De imediato, questionei, afinal, não foi ele que dias antes justificou que era mais um modo de sermos enrolados pelo sistema bancário? E foi aí que ele me disse que agora era uma forma de paquerar entre os homens: você manda uma quantia irrisória, centavos. Se a pessoa retornar pra você, é uma negativa, se aceitar, pode marcar! 

Se for tão fácil namorar quanto é passar um Pix, eu diria que vivemos uma grande revolução das coisas descartáveis. Um simples exemplo. Eu vivia sem água na segunda-feira de manhã. E sem dinheiro. A moça da água já sabia. Agora, quando eu ligo, ela diz “Temos pix,” e eu: “Sério? Que maravilha, você resolveu minha vida!” E foi mesmo. Tenho sempre dois garrafões cheios e estou bastante hidratada graças ao Pix. Será que os Pix lovers, os amores pixados, são tão úteis quanto meus garrafões retornáveis?

Confesso que é difícil uma cringe botar fé nessas coisas! Sou filha de bancário e esperava, ansiosamente, meu pai chegar do trabalho, e isso, às vezes, se dava tarde da noite porque todo o dinheiro era contado, manualmente. E se faltassem 2 centavos, não era pra paquerar e, sim, para encontrar sob pena de ser acusado de roubo!

Ele sempre conta que, ao entrar no Banco do Brasil, tinha um amigo do qual todos mangavam, pois ele dizia: “Rapaz, daqui a alguns anos seremos todos substituídos por máquinas e não haverá dinheiro, só um pedaço de plástico que passaremos na máquina e liberará o pagamento.” 1968. Acredite nos seus instintos, mesmo que os outros te achem louco. O cara poderia ser o inventor do cartão de crédito e foi ridicularizado pelos descrentes da época.

No mundo virtual, as lentes são aumentadas e só percebemos as pessoas pelo que elas querem mostrar – que, invariavelmente, é o seu melhor lado. Não esqueçam, pois isso não é um detalhe! O rapaz se apresenta com o triplo do seu tamanho real.

Dia desses ouvi de uma conhecida, solteira, que usava um aplicativo de namoro até o dia em que a ferramenta começou a mostrar que o paquera estava muito perto, perto demais. Ela foi ficando bastante assustada. De repente, o homem entrou no elevador do seu prédio. Sim, o gatinho era um velho vizinho de roupa surrada. Como ela morava numa cidade mediana paulista, passou a ligar o aplicativo apenas aos finais de semana quando ia para a capital. 

O capitalismo e o amor

Em O amor nos tempos do capitalismo, Eva Illouz avalia que a cultura do capitalismo caminhou de mãos dadas com a criação da cultura afetiva, e que a observância dos nossos sentimentos promoveria despertar para a descoberta dessa nova organização social do capital. Começa a dissolução da ideia de esfera pública como algo desprovido de amor em detrimento do privado, saturado dele.

Viveríamos, a seu ver, o capitalismo afetivo: uma cultura na qual os discursos afetivos e econômicos se moldam, tendo o afeto como algo essencial ao comportamento econômico. Reciprocamente, a vida afetiva da classe média e alta segue a lógica das relações econômicas e de troca. Seria a racionalização e mercantilização dos afetos. 

Não é tão estranho assim pensar nesses termos, uma vez que a cultura em que vivemos tem data para celebrar o amor no dia dos namorados, 12 de junho, e a lógica de comprar um presente e incrementar a venda no comércio e restaurantes no período. Os sites de encontro na Internet são extremamente lucrativos.

Eva Illouz afirma que em torno de 40 milhões de pessoas visitam diariamente os sites de relacionamentos norte-americanos e pagam pacotes em torno de 25 dólares, ou seja, pagam por encontros online. Assim, vejo pouca diferença para os Pix lovers, que gastam menos e transferem dinheiro diretamente ao pretendente, em lugar de enriquecer os grandes conglomerados. E aí, já fez seu Pix hoje?

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).