Bemdito

Esta é uma carta de amor

Quando o amor é feito da dureza das memórias e da aceitação de mim e de ti
POR Jamieson Simões
The lovers (René Magritte)

Eu queria te dizer, com a força dos fogos de artifício que explodem no céu quando tem avanço de facção: eu te amo. O medo acabou e agora estamos nós dois nus, diante um do outro, sem roupa e com toda bobagem que somos capazes de pensar e querer. Teu desejo de sertão e minha fome de mar podem finalmente se encontrar naquela ponta de praia na Leste/Oeste que eu batizei de “PARA TI”, em tua homenagem.

Esta é uma carta de amor porque percebi algo de poesia quando do nosso reencontro, e muita coisa havia mudado. Você não gostava mais de tapioca fina (disse que era quase um papel sem gosto) e preferia a tapioca grossa, mais sertaneja. Percebi raízes profundas a nos conectar ao passado e ao futuro e aqui em nós é uma coisa só. Seu cabelo cresceu com a cor da lua e tem mais desenhos pelo corpo, acho que eram as iniciais do meu nome em garatuja vermelha tatuadas na tua costela.

Quando eu ando pela cidade de bicicleta é como se um ímã me puxasse na direção da tua casa. É uma nova cartografia se inscrevendo sob as velhas memórias, e a gente seguindo de mãos dadas escutando Miss Li cantando como se fosse a primeira vez. É dessas coisas que meu amor é feito: da dureza das memórias e da aceitação de mim e de ti.

Cicatrizes temos. Feridas abertas, também. Mas a decisão de ficarmos juntos a despeito de nós mesmos foi a mais acertada que tomamos. Essa é uma carta de amor e começou a ser escrita quando você me deu de presente aquele livro com o verso marcado com meu nome: O que é feito de pedaços precisa ser amado. Te xinguei. Fechei o livro, mas as palavras fizeram um rebuliço no meu peito, que só desentalou quando ousei dizer o óbvio.

Esta é uma carta de amor porque não sei dar nome ao que sinto quando te vejo acordando. Porque não sei dizer da dimensão do meu desejo que circula mas sempre encontra em ti uma paragem, uma quietude que me faz lembrar um saci preso na garrafa que ao menor descuido, escapa. E nessa dimensão que o tempo das ausências se conjuga é que incorporo na rotina a tua falta, tua fuga, tuas viagens.

Lembro-me da tua mão abrindo com hesitação a porta do carro, teus dedos puxaram a maçaneta com a precisão de quem puxa um gatilho. Eu sabia que era mais um tempo longe, tanto faz se era um final de semana ou se um mês ou ainda, se era mais uma fuga para Notting Hill (na última tentativa de me esquecer, estavas lá). Fato é que sofro com tua ausência porque me lembra das minhas próprias fugas e há medo de que não mais voltes.

Esta é uma carta de amor porque é isso que somos: amor e contradições. Esta é uma carta de amor porque já fomos muitas coisas antes de sermos nós mesmos. Esta é uma carta de amor porque estou tentando organizar nas palavras a bagunça que você deixou e faz aqui dentro. Esta é uma carta de amor e um pedido: fica. Me interessa tua montanha-russa emocional. Me interessam os planos de aposentadoria e a ideia de morar nos matos. Me interessa saber de ti toda. Esta é a única carta de amor possível.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.