Bemdito

Respeita o privado!

Como a exposição de comunicações privadas no Dia dos Namorados reafirma a banalização da data: para ser e sentir, é preciso mostrar
POR Jáder Santana
Room in New York, 1932, de Edward Hopper

Foi-se o tempo em que cartas eram documentos que correspondiam ao nosso âmbito privado. Também os e-mails, as conversas de WhatsApp. E as mensagens privadas das redes sociais, as DMs. Todas públicas, tudo é público. Chega o tempo em que, se alguém quer privacidade em suas comunicações, precisa alertar o interlocutor, como nos tempos de depoimentos de Orkut: NÃO ACEITA!!!

Não é de hoje. A espetacularização da intimidade vem caminhando ao lado da popularização do Instagram desde pouco depois de seu lançamento, quando a rede deixou de ser espaço para veiculação de imagens bonitas para se tornar diário público de hábitos e vaidades. A primeira dimensão do privado que se perdeu foi a da casa, a das paredes como separação fundamental do infinito público. A experimentação dos espaços exteriores, que se dava simbolicamente pelas portas e janelas – onde o público pode ser acessado pelo privado e o privado pode ser apenas vislumbrado pelo público -, ganhou nova medida. Pela janela do Instagram, o vislumbre torna-se exposição e o privado se esgota. 

À perda da dimensão de privacidade da casa seguiu-se a perda da dimensão de privacidade das relações e suas idiossincrasias. A singeleza dos bilhetes, o segredo das cartas, os elogios desinteressados, a dedicatória no livro, as piadas sujas. Tudo o que antes formava a estrutura íntima dos relacionamentos, agora é exposto para estruturar uma miríade de relações virtuais repetitivas, frágeis e, em última instância, insignificantes. Nessa nova configuração, o que era sussurro se transforma em grito. 

O Dia dos Namorados vem acentuar essa nova composição. A cada 12 de junho, e com uma falta de pudor jamais vista como no último sábado, deslizar o feed das redes sociais transforma-se em um passeio forçado pela intimidade dos casais. Conduzidos por entre os detalhes mais pessoais daquela simulação de felicidade conjugal, ficamos sabendo de apelidos carinhosos, declarações de paixão, votos de eternidade e jantares refinados. Somos convidados a nos meter em uma história que deveria ser de duas pessoas, como uma subversão pública da monogamia sentimental, a implosão de uma linguagem que, por sua estruturação, deveria ser privada.

Quando falamos em linguagem privada, para a filosofia, falamos dos termos que ganham significado por meio da associação com sensações pessoais e incomunicáveis. Quando se comunica o incomunicável, a linguagem abandona seu caráter privado. Quando essa comunicação se consuma no ambiente sem fronteiras das redes sociais, então, cumpre-se a tragédia. Na linguagem privada, nossa capacidade de conhecer nossos estados interiores independe do reconhecimento do mundo exterior e das outras mentes. Quando nosso interior é devassado e exposto, quando precisa desse reconhecimento exterior para existir, o que sobra é o signo de nossa incompetência. 

Incompetência. É a impressão que tenho quando vejo pessoas empenhadas em demonstrar de modo tão incisivo, quase vulgar, o triunfo de suas trajetórias – porque a declaração pública de amor é menos sobre o parceiro e mais sobre sua própria vaidade. Ou quando vejo stories com prints de mensagens privadas, quase sempre elogios recebidos. Ou a foto da dedicatória do livro que ganhou de presente. A imagem do texto completo de uma carta. A exposição de linguagens privadas indica nada mais que uma incompetência profunda de auto aceitação. 

No ambiente difícil das redes sociais, evito fazer elogios (e críticas) públicos. Não quero que minhas palavras sejam utilizadas como estratégia de marketing para a vaidade alheia. Sempre preferi enviar mensagens privadas, e-mails, falar por telefone. Cara a cara. Mantenho meus elogios e minhas críticas no campo da intimidade. Quero que quem recebe meu elogio saiba que foi elogiado porque, de alguma forma, produziu efeitos em mim. Tenho aversão aos elogios interessados e aos elogiados vaidosos. Mais que isso, gosto de saber que meu espaço privado é inviolável e que permanece inacessível para estranhos. Minha linguagem privada é minha e dos meus convidados.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.