Bemdito

Dar um calote na Covid

Cancelar a dívida dos países para financiar o combate à pandemia pode ser o melhor caminho para evitar uma recessão mundial
POR Wanderley Neves

Cancelar a dívida contraída pelos países para financiar o combate à pandemia de Covid-19 pode ser o melhor caminho para evitar uma prolongada recessão mundial

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

Até dezembro do ano passado, os governos nacionais incluíram US$ 13,8 trilhões a mais em seus orçamentos para combater os efeitos da pandemia de Covid-19, segundo as contas feitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Em dólares da última quarta (R$ 5,745), isso equivale a mais de R$ 79 trilhões, ou 228 vezes a soma de todas as cédulas e moedas em circulação no Brasil inteiro

De todo esse montante inimaginável, apenas US$ 1 trilhão (R$ 5,745 trilhões) foi injetado no setor da saúde; todo o resto, como disse a diretora-geral do fundo, Kristalina Gueorguieva, foi usado para “colocar um chão sob a economia” enquanto metade da população mundial era obrigada a ficar em casa para conter o avanço do vírus durante o Grande Lockdown. Ainda assim, a economia mundial deve terminar o ano 3,5% menor.

É claro que o custo para cada economia foi desigual, desde 44% do produto interno bruto (PIB) no Japão e no arquipélago de Maurício a 2% no México ou 1% no Vietnã. Nessa lista, o Brasil aparece com 14,5% do PIB investidos, no topo entre as economias emergentes do G20. Do outro lado do balanço, o fechamento da economia fez com que esse dinheiro tenha sido levantado à custa de geração de dívida, que no conjunto deve atingir 98% do PIB mundial ao fim de 2020, enquanto a projeção pré-pandemia era que ficasse em 82%.

Na Europa, em que essa escalada monumental da dívida encontrou países ainda combalidos da recessão iniciada em 2008, recorreu-se a um mecanismo daqueles tempos ainda em vigor: a compra pelo Banco Central Europeu (BCE) de títulos da dívida dos países na zona do euro. Dessa forma, os governos trocam credores de mercado pela instituição europeia (ou seja, eles mesmos), que se compromete a não cobrar antes de 2024 o valor principal dos títulos vencidos, numa mal disfarçada operação de impressão de dinheiro. 

O BCE reservou até agora 1,85 trilhão de euros para usar nesse programa pelo menos até março do ano que vem, e ontem mesmo anunciou que o ritmo das compras vai aumentar nos próximos meses para conter o (por enquanto) leve aumento dos custos para contrair dívida no mercado financeiro. No total, o balanço do BCE já contém perto de 2,5 trilhões de euros, ou quase 25% de toda a dívida pública europeia.

Agora que a vacinação começa a colocar o fim da pandemia e uma reabertura plena da economia no horizonte, o mundo inteiro busca como lidar com essa explosão na dívida pública. Um grupo de quase 150 economistas da Suécia a Portugal publicou mês passado um manifesto em diversos jornais europeus: Cancelar as dívidas públicas que o BCE detém para tomar as rédeas do nosso destino. Já que os países europeus devem a si mesmos 25% de suas dívidas, é possível simplesmente apagar essa obrigação “para financiar a reconstrução ambiental e social, sob controle democrático”.

O déficit e a dívida públicos chegaram a níveis tão altos em todo o mundo no último ano que a já tão contestada receita tradicional de austeridade fiscal para equilibrar as contas corre agora um grande risco de inviabilizar completamente a ação do Estado, prolongando a recessão econômica e aprofundando as desigualdades expostas durante a pandemia. Exemplo disso foi a insana proposta do governo brasileiro de extinguir o piso de gastos em educação e saúde da Constituição Federal. 

Só para não fugir completamente do Brasil nesta primeira coluna, no relatório de janeiro do seu Monitor Fiscal, o FMI recomenda que os governos aproveitem o momento de rearranjo proporcionado pelas ações de combate à pandemia para desenhar políticas que promovam “uma transformação verde, digital e inclusiva da economia”. É mais uma patente demonstração do descompasso entre o pensamento em vigor nas grandes rodas do mundo e o mofo pinochetista que hoje determina os rumos da política econômica brasileira, inclusa a apropriação militar dos recursos ditos estratégicos, como construção pesada, geração de energia, exploração de minérios e compra de parlamentares.

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter e no Instagram.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.