Bemdito

Sobre a pressa no jornalismo

Continuo a pensar sobre como o tempo influencia repórteres e meios de comunicação
POR Rogério Christofoletti

No mês passado, remexi as ideias numa gaveta da memória e deixei escapar umas mariposas. Eu revisitava as provocações de um amigo sobre como o tempo impacta o jornalismo e confesso que ainda não estou totalmente pacificado com a coisa. Por isso, insisto no tema com alguma esperança de que leitor e leitora sejam pacientes.

O jornalismo é dessas atividades que tenta cristalizar o tempo em momentos, em histórias, em episódios. Para o jornalismo, interessa então reportar os fatos narráveis e eles se desdobram em momentos da vida social, em fagulhas passageiras que nos atravessam. Pretensiosos, os jornalistas se ocupam de tentar frear o trem dos eventos, elegendo alguns deles e os convertendo em notícias, em histórias públicas. Não é pouco.

Mas note que os jornalistas sabem que é impossível deter o tempo e mesmo assim alimentam a ilusão de que os registros que fazem dos eventos calcificam os fatos e os promovem a outro patamar, o do acontecimento importante. Jornalistas fazem isso a todo momento, e isso revela um comportamento compulsivo e, de certa forma, volúvel. A compulsão se dá pela infinita repetição de acreditar no momento como a célula-matriz do tempo social, o tempo a ser narrado. A volubilidade acontece porque o interesse dos jornalistas dura menos ainda que a já perecível notícia. O jornalismo acredita no agora e tenta congelá-lo. Mas assim que opera o congelamento, perde parte do interesse na matéria e vai atrás de outros agoras. O jornalismo é voraz e insaciável. Ah! O jornalismo tem pressa!

A pressa é, talvez, a maior pressão do jornalismo. Maior que as exigências mercantis e financeiras porque ela – a pressa – precede qualquer outra demanda. Ao fim e ao cabo, ela leva a outras demandas. A pressa faz o jornalismo se acelerar para ser lucrativo e rentável, e o faz acreditar que pode ser importante, útil e que preenche uma lacuna na vida social.

Me ocorre outra ideia aqui: a pressa jornalística hipertrofia o mercado de notícias, soterra as pessoas de informação e alimenta a ansiedade informativa. O monstro da pressa satura, e esvazia de valor os conteúdos que se empilham diante de nós.

Ao mesmo tempo, a pressa contribui para a incompletude e a precariedade do jornalismo. Aliás, ela faz parte do método jornalístico, e com um efeito colateral perverso: apressado, o método se esquece da ética no jornalismo. Daí que não é exagerado diezer que a pressa seja inimiga dessa ética porque agir apressadamente abrevia etapas do processo produtivo de modo a antecipar o resultado. Assim, o repórter acelerado deixa de verificar quantas vezes seriam necessárias a consistência e a procedência das informações que deseja publicar. Para chegar antes dos concorrentes, o jornalista descarta processos importantes que contribuiriam com a qualidade técnica e que serviriam de medidas de controle ético.

Extrapolando a ideia, a pressa segue uma matemática macabra e impiedosa: para chegar antes ao público, o repórter verifica menos, ouve menos, abrevia o processamento e o embalamento das notícias. Matematicamente, o produto vai se ressentir de ser menos confiável, menos consistente, menos robusto, e, talvez até, menos verdadeiro. Apesar disso, não dá pra negar: a pressa está no DNA do método jornalístico e contagia quem produz informação, quem faz sua mediação e quem se alimenta dela. O jornalismo angustia…

Parte dessa angústia vem de outra forma de apropriação do tempo pelo jornalismo. Frequentemente, jornalistas tentam impor seus relógios sobre as outras atividades, esperando que a vida social se vergue diante da cadeia produtiva das notícias. Por isso, repórteres crivam fontes de informação com tantas perguntas em poucos segundos. Por isso, esperam que o tempo da política, da justiça, da ciência se encaixem no tempo das notícias. Acontece que a formação de uma coalizão partidária, a análise de uma ação judicial e uma descoberta científica têm seus próprios tempos, regras específicas para emergir como acontecimentos. O jornalismo ignora essa condição, e eu acredito pessoalmente que faça isso de maneira consciente e deliberada. Apenas para atender a um imperativo: a pressa.

Com essa janela aberta diante de nossos olhos, podemos afirmar que o jornalismo mantém uma relação problemática com o tempo. Parece até resultado de compelxas e inadiáveis relações de parentesco, dessas reconhecidas afirmações freudianas de que a família é o nosso ninho, mas também a fonte das nossas neuroses. O jornalismo é filho do tempo e tenta a todo momento devorá-lo ou dominá-lo…

No meio de tudo, vivemos dias em que as informações se autodestroem no rolar das telas do celular e num tempo em que alguns pregam o slow journalism. Esta tensão não se dá com a mesma medida e intensidade, mas sua existência nos leva a acreditar que há alguma disposição para refletir sobre qual tempo queremos para o relógio jornalístico.

A pressa e a ansiedade, por exemplo, se conectam diretamente com uma visão equivocada de produtividade e de sucesso. Para muitos de nós, ser produtivo é fazer mais coisas em menos tempo, ou fazer mais coisas no menor tempo possível, ou ainda fazer mais coisas ao mesmo tempo. Ser produtivo é também ser alguém nas sociedades industrial e pós-industrial, que exigem e esperam que cada indivíduo seja uma peça e ajude a mover as inadiáveis engrenagens do crescimento. Ser produtivo é domar o tempo, e como ninguém parece ter tempo sobrando, domesticá-lo é um fator de sucesso.

Por outro lado, me pergunto: se a vida anda tão agitada, por que aceitaríamos um jornalismo sem pressa?

Respondo em voz alta: sou cético quanto a mudanças muito drásticas no panorama. Os compromissos que o jornalismo assumiu com a pressa engessam nossa capacidade de ruptura. E se a exigência atual é por inovação e disrupção, quem sabe desacelerar seja a atitude mais radical a ser implementada? Mantenho algum ceticismo, que divide seu espaço com teimosia. É por isso que consigo imaginar um cenário em que semeamos atitudes e produtos que convidem à desaceleração, a uma redução gradual da velocidade vertiginosa a que nos colocamos. Imagino uma paisagem em que oferecemos reportagens mais longas e mais sedutoras, que nos exijam mais concentração e tempo de leitura. Um cenário com podcasts, newsletters, sites como este BemDito e uma oferta generosa de unidades jornalísticas que inoculem a necessidade de ajustar os ritmos e os compassos de nossas vidas.

Um dos efeitos da pressa injustificada do jornalismo é confundir urgência com importância. Daí que priorizamos aquilo que aparenta ser urgente, deixando de lado o que realmente importa e pode afetar nossas vidas e rumos. Deixamos de viver para sobreviver. O filósofo português André Barata provoca no título de um de seus livros: E se deixássemos de sobreviver? Sim, ele está preocupado em apenas nos dedicarmos à essa tarefa comezinha de só buscar seguir os fluxos.

Aproveito e me aproprio da pergunta dele para ajustar a minha: e se adotássemos novas cronometragens para o jornalismo, de modo a convivermos com diversas temporalidades, com diversas durações? Podemos fazer isso? É difícil romper com hábitos tão decantados, mas a complexidade do projeto não torna o empreendimento de todo impossível. Podemos desacelerar o jornalismo? Podemos. Devemos? A julgar pelo que disse até agora e pela relação não saudável que o jornalismo mantém com o tempo, sim. Talvez devamos desacelerar o jornalismo. A pergunta mais difícil e que exige mais tempo de resposta é: Queremos?

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).