Bemdito

Velhas novidades sobre o tempo e o jornalismo

Abri uma gaveta de ideias, e um punhado delas escapou como mariposas
POR Rogério Christofoletti

Faz uns anos, um querido amigo português me propôs organizar umas ideias em torno do tempo no jornalismo. Verdadeiramente obcecado pela transitoriedade da vida, ele reuniu pessoas das mais diversas áreas para tratar desse tema infinito que é o tempo. O que seria um convite, tornou-se um gesto irresponsável da minha parte, afinal, este amigo era um… filósofo! Seria muita pretensão nadar por águas tão revoltas, mas em nome da amizade, juntei um punhadinho de ideias que reencontrei hoje cedo numa gaveta aqui em casa. Repito o desatino, compartilhando com quem me lê agora.

O jornalismo é uma atividade que se define por um tempo: nas mais diversas línguas, traz embutido no nome uma marcação temporal, uma noção de duração. Fica evidente no francês, quando “journalisme” deriva de “jour” (dia), e no italiano, com “gionalismo” que vem de “giorno”. Em espanhol, temos “periodismo” que nos evoca a proposta do alemão Otto Groth, que propunha entender e pesquisar o jornalismo como uma ciência periódica.

O jornalismo é uma atividade equilibrada não sobre o tempo, mas sobre o agora, a factualidade, o inapreensível-agora. Neste sentido, o tempo do jornalismo é o tempo da urgência. O acontecimento que interessa ao jornalismo é um fenômeno feito de instantes, uma fração preciosa e indomável. O instante é o signo do agora e não se pode detê-lo.

A fruição do tempo no jornalismo está sempre associada ao movimento e à agitação. Nunca à calma e ao repouso. No jornalismo, as coisas nunca estão estáticas, nunca podem estar. Elas estão em movimento. Sempre. Assim, o jornalismo vive em estado de permanente ansiedade. O jornalismo vive com pressa, e da pressa, numa contagem regressiva insistente.

O jornalismo, que vive de indagar e inquirir, evita se perguntar: é possível viver sem pressa? É possível inverter a nossa cotidiana contagem regressiva? E se o fizéssemos, como faríamos?

O jornalismo é inimigo da permanência. Tudo passa no rio do jornalismo, e embora os jornalistas façam como o repetitivo Sísifo, as redações sempre buscam novas novidades. De novo, recorro ao léxico, e no jornalismo, o produto mínimo e mais abundante é a notícia, “news” em inglês: “novidade”.

No tempo do nosso tempo, o novo já nasce velho, o que significa dizer que a novidade dura pouquíssimo, quase nada. O jornalismo vive no fio da navalha daquilo que quase não dura. Todos os dias, o tempo todo, jornalistas correm atrás do ingovernável, do inapreensível, do indomável instante. Os jornalistas são, então, operários do volátil. Esses profissionais têm confirmações frequentes de que tudo o que é sólido se desmancha no ar e sua brisa fica tatuada como história. Para o jornalismo, o tempo não é duração. É passagem. O relógio se mexendo não é só a soma de segundos, minutos e horas, mas o desfile de histórias, episódios e capítulos.

Para quem vive de dar notícias, o novo é o que o importa. O velho é descartado porque significa o que já passou, o que ficou pra trás. É bem verdade que o jornalismo não “colhe” os agoras no pomar do tempo. É mais apropriado dizer que ele corre atrás do trem dos eventos, tentando resgatar, frear, deter, pinçar os instantes e os fatos, que ainda estão frescos e jovens. O jornalismo vive de sequestros e não de fundações. E porque o novo vale mais, melhor será chegar antes e não depois. No jornalismo, chegar depois é inadmissível, imperdoável, uma falha grave, um fracasso. Nas salas de redação, incentivamos quem chega antes e não depois, pois quem chega muito depois do fato, se depara com um cadáver em adiantado estado de decomposição. O jornalismo privilegia devorar carnes mais frescas.

Com a desculpa de atender ao público ansioso por informação, inventamos o fechamento da edição. Ele é um ponto final fictício, arbitrário, ocasional e aleatório, costumeiramente ladeado com um punhado de justificativas. O fechamento é, então, uma estratégia para completar tempos. Isso nos ajuda a ter a completude de um fato, e assim, a história tem começo-meio-e-fim, pelo menos provisoriamente. O fechamento nos ajuda a ter edições. Funciona como um ajuste de contas, e equivale à sincronização dos relógios. Ficam combinados os relógios dos jornalistas e das audiências. O pacto pode ser traduzido assim: o que aconteceu de mais importante hoje é isso, mas amanhã, teremos uma nova lista de coisas importantes e inadiáveis para se saber.

Mas sejamos francos: o fechamento já foi mais importante. Isso foi antes da internet e de terem aumentado a velocidade da esteira de notícias. Depois da aceleração, o fechamento passou a se manifestar no plural. Temos fechamentos de edição. Muitos ao longo da jornada. Tantos quanto forem necessários para ocupar os rasgos do tecido esgarçado do tempo. Nas salas de redação de sites e portais, toda hora é hora de fechamento.

De alguma forma, esse fluxo infinito satisfaz (ou não!) um desabrigado fetiche que jornalistas têm pela velocidade. Como o jornalismo não abre mão de se reger pelo fechamento, inventamos muitos fechamentos. Para isso, esticamos infinitamente o varal de notícias. Fechar uma edição permite datar. Se antes usávamos como marcador temporal dia, mês e ano, agora usamos horas, minutos e segundos. Substituímos as etiquetas antigas, mas não renunciamos ao compromisso de datar. Afinal, datar é marcar, hastear bandeira, determinar validade e caducidade. Datar é como se apossar de um instante, de um fragmento temporal, cercá-lo e congelá-lo. A data na primeira página do jornal é o atestado do fato acontecido e do tempo passado. É a estampa de um domínio. Pretenso domínio, sejamos francos de novo.

A datação é um exercício de poder, a tomada de uma cidadela, o cerco ao acontecimento. Mas não é a única forma de distinção no jornalismo. Inventamos também o furo jornalístico. Ele é a a publicação de informação exclusiva, em primeira mão. É a encarnação do chegar antes, o que o coloca numa posição de virtude jornalística. Ambicionamos, desejamos, perseguimos o furo jornalístico e nos orientamos por ele. O furo jornalístico é o combustível, o alimento do fantasma da pressa. Tentando me desassombrar, vasculho com calma essas ideias do tempo no jornalismo…

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).