Bemdito

Bolsonarismo constrangido

Na interseção do “bolsominion inveterado” com o “bolsominion arrependido”, jaz uma incógnita
POR Felipe Pinheiro

Quando era rapagote e li “O Pequeno Príncipe” (e aqui não cabem pitacos sobre a grandeza ou pequenez literária da obra, escritura sagrada dos concursos de Miss), me marcou fundo uma passagem, que tá sempre emergindo na lembrança e espelhando nosso atual habitat político. 

Cruzando seu itinerário intergaláctico, o Pequeno Príncipe aterrissa em um planeta habitado por um beberrão, um pinguço. Compadecido pela existência maltrapilha do homem ignóbil, o nobre menino trava diálogo com ele:

– Por que é que bebes?
– Bebo para me esquecer.
– Para esquecer o quê?
– Para me esquecer que tenho vergonha.
– Vergonha de quê?
– Vergonha de beber!!

Voltaremos a isso mais adiante, aguarde só uma coisinha.

Desde que o shogunato bolsonarista se instalou no Brasil, a oposição vive em ânsia pelo dia em que os apoiantes de Jair irão finalmente arrepender-se da escolha e consertar o malfeito. Para ser bem franco, nunca confiei minhas esperanças ao fenômeno “bolsominion arrependido”. O tipo até existe, é coisa notada, mas não existirá, a meu ver, em volume para nos garantir uma eleição de mar manso e ventos gentis em 2022. Em grande volume, diga-se, ainda existirão os bolsonaristas convictos.

A entidade bolsonarista que realmente que me intriga e preocupa é outra, bem mais complexa e adoentada. Na interseção dos convictos com os arrependidos, eu vejo um enclave de constrangidos. 

Diferentemente dos inveterados que passionalmente votam em Jair, o bolsonarista constrangido veio ao mundo dotado de uma safra modesta de neurônios, e também de um minúsculo gérmen de razoabilidade. Ele sabe que Jair nos enrascou. Sabe que votou mal. Fatalmente, veio ao mundo dotado também de um orgulho faraônico e de um gérmen poderoso de cinismo. Então não admite o que sabe.

Em conversas politiqueiras, o bolsonarista constrangido até cede uma mea culpa e reconhece as barbaridades mais obscenas do mandante. Mas só as obscenas. Ademais, vai se desdobrando em lógicas ardilosas para validar o governo sem dar bandeira de estar validando o governo. Em subtexto, é mais ou menos assim: “O fato de eu estar defendendo Bolsonaro não implica que eu esteja defendendo Bolsonaro”; ou: “Defender as atitudes de Bolsonaro é uma coisa, já defender as atitudes de Bolsonaro é outra completamente diferente”. É um argumento de efeito recursivo, repetido em si mesmo, como a lata de pó Royal estampada no rótulo da lata de pó Royal.

Em pesquisas de avaliação do governo, pra pagar de sensato, o constrangido aparece na barra do “regular”. Na sondagem de intenção de voto, pra pagar de sabido, se declara indeciso e desejoso de uma política menos viciada. Mas não nos enganemos: no pega pra capar de um segundo turno aos moldes de 2018, no mano a mano com a urna, tendo de escolher entre livrar-nos de Jair ou livrar-se do peso de um “Eu errei”, o constrangido entregaria o Brasil a mais um século de shogunato. Afinal, sendo tão sensato e tão sabido, como poderia ter errado em 2018?

Doente de ego, encurralado entre o desencanto e a vaidade, o bolsonarista constrangido não encontra outro caminho senão… continuar sendo bolsonarista. Nem tão convicto para se lançar de peito aberto na cruzada, nem tão arrependido para bancar o prejuízo de suas escolhas pregressas. Sua causa não é proteger Jair, mas proteger as próprias vergonhas.

Nesse autofanatismo seguem eles, afundando no erro até que o erro seja a única realidade existente. E portanto a única realidade possível. E nada figura com maior clareza esses sujeitos e sujeitas que o diálogo do pequeno príncipe com o papudinho:

– Por que você vota em Bolsonaro?
– Para me esquecer.
– Esquecer o quê?
– Esquecer que tenho vergonha.
– Vergonha do quê?
– Vergonha de votar em Bolsonaro!!

Eis a crise. E eis a incógnita: esse caminho tem volta?