Bemdito

Método bolsonarista e realidade paralela

Contra desgaste, Bolsonaro produz fatos alternativos para testar ao máximo o limite das instituições democráticas
POR Monalisa Torres
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Enquanto a CPI da Covid aumenta a pressão política, Bolsonaro produz narrativa para testar ao máximo o limite das instituições democráticas

Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br

Em artigo recém-publicado no livro Eleições 2020: Comunicação eleitoral na disputa para prefeituras, em colaboração com outros quatro pesquisadores, propomos  uma definição sobre o que é o bolsonarismo: “entendemos o bolsonarismo como a versão brasileira de um movimento político internacional da direita ultraconservadora, de perfil autoritário, baseado num discurso de matriz ideológica de direita e que transcende a figura de seu principal representante, Jair Bolsonaro”.

No referido artigo, intitulado Os sinais do Bolsonarismo nas eleições de 2020 em Fortaleza, focamos nos elementos discursivos que caracterizam o bolsonarismo. Mas, como movimento político, além de uma linguagem própria, o bolsonarismo também se expressa através de um método de ação próprio.

Tal método pode ser percebido através de três componentes, a saber: 1) a utilização de fatos alternativos para a elaboração de suas narrativas; 2) a terceirização de responsabilidades, com a identificação de bodes expiatórios e 3) a produção/intensificação de conflitos (tensionamentos com outros atores e instituições) em momentos de muita pressão. Esses três componentes convergem entre si. Senão vejamos.

Passado quase um mês do início dos trabalhos da CPI da Covid e após os senadores terem ouvido ex-ministros e atuais ministros, ex-integrantes e atuais integrantes do governo federal, alguns episódios explicitaram o método bolsonarista e a sua realidade paralela.

Inquiridos sobre as ações de suas pastas e possíveis responsabilidades no adensamento da crise sanitária que se instalou no país, Fábio Wajngarten (ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social), Ernesto Araújo (ex-ministro das Relações Exteriores) e  Eduardo Pazuello (ex-ministro da Saúde) mentiram descaradamente.

No bolsonarismo, a verdade não é um valor absoluto. Ao contrário, ela pode ser relativizada. Cada um produz a sua própria verdade (ou a sua narrativa). Segundo essa lógica, a máxima de que “contra fatos não há argumentos” cai por terra. Até porque a construção de suas narrativas (“verdades”) é balizada por fatos alternativos. Ou seja, apenas é considerado (como fato) aquilo que corrobora com a narrativa – ou seja, os fatos são recortados e adaptados para que se encaixem na narrativa.

Foi a partir desse princípio que Wajngarten, por exemplo, negou ter participado das negociações para compra de vacinas. O que foi desmentido por áudio de entrevista concedida pelo ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social à Revista Veja. Optando por negar todo um conjunto de postagens e publicações em suas redes sociais, Ernesto Araújo mentiu ao afirmar não ter tido qualquer postura de hostilidade em relação à China, maior fornecedor de insumos para a produção de vacinas (Coronavac) no Brasil.

Pazuello, por sua vez, lembrado sobre a sua participação em live do presidente Bolsonaro, momento em que afirmou “um manda e o outro obedece” sobre a suspensão da negociação com fabricantes de vacinas, o ex-ministro da Saúde disse se tratar de “uma coisa de internet”, isentando o presidente de qualquer responsabilidade no que diz respeito às decisões sobre a compra de imunizantes. A escolha dos fatos que interessam, ou seja, a opção pelos fatos alternativos, é estratégia de manutenção da “narrativa da hora” adotada pelo bolsonarismo.

Ao longo dos depoimentos de Wajngarten, Araújo e Pazuello, foi possível perceber também a tática de blindagem do presidente. A construção da narrativa balizada em fatos alternativos leva, consequentemente, à identificação de um bode expiatório, um outro para quem toda a culpa possa ser lançada, um outro responsável por atrapalhar ou desfazer o bom trabalho que teria sido realizado. Para Wajngarten e Araújo, ouvidos primeiro, o bode expiatório da vez foi Pazuello, acusado pelo atraso no início da vacinação. Sobre a crise de oxigênio que assolou Manaus, Pazuello escolheu outros bodes expiatórios: os servidores de sua pasta e o governo amazonense.

Como toda Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI da Covid produz desgaste políticos ao governo, sobretudo por escancarar os resultados que a falta de iniciativa e as escolhas do governo federal tiveram no aprofundamento da crise sanitária, estampada no número de mortes por Covid-19 acumulados até agora. No momento em que escrevo esse artigo, o Brasil soma 449 mil vidas perdidas.

Em cenários como esse, de desgaste e aumento da pressão política, a estratégia é aumentar ainda mais a pressão. Por isso vimos, nos últimos finais de semana desde que a CPI iniciou os seus trabalhos, o bolsonarismo convocando e promovendo manifestações em favor do presidente e contra as instituições democráticas. Essa tática funciona não apenas para manter mobilizada a base bolsonarista, mas também para testar (e esticar) ao máximo o limite dos outros poderes e das instituições democráticas.

No domingo, 23 de maio, dois dias após ser ouvido pelo Senado Federal, o general Pazuello, que afirmou ser favorável às medidas não farmacológicas de proteção contra o coronavírus, como o uso de máscaras e distanciamento social, foi visto em palanque com Bolsonaro, sem máscara, em meio a milhares de pessoas.

Além de provocar nova crise nas Forças Armadas – tendo em vista que militares da ativa não podem participar de manifestações político-partidárias de qualquer natureza – também deverá ser reconvocado a prestar novos esclarecimentos ao Senado Federal.

O método bolsonarista tende à criação de um universo paralelo. Nele, as “verdades” são produzidas. Os fatos alternativos constituem a essência de suas narrativas, que dividem o mundo, de forma maniqueísta, entre o bem e o mal. “O bem”, dirá o bolsonarismo, “somos nós. Nós não falhamos. E se não entregamos o que prometemos, não foi por nossa culpa. Foi o outro. O outro que é mal e que, portanto, deve ser eliminado”. Segundo essa lógica, não há espaço para contestações. E se alguém contestar? Vai-se à rua defender a narrativa, mesmo que o preço seja esgarçar mais ainda o tecido político-institucional brasileiro.

Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.