Bemdito

Meritocracia, sonho americano e realidade

Nem sempre o senso comum equivale à verdade. Esforço nunca foi o único requisito para o sucesso
POR Alisson Sellaro

Nem sempre o senso comum equivale à verdade. Esforço nunca foi o único requisito para o sucesso

Alisson Sellaro
sellaro@sellaro.co

A realidade é uma senhora discreta. É ofendida diariamente, mas aguenta quase tudo calada. Reage pouco e, quando o faz, geralmente é de uma forma tão irônica que nem sempre percebemos de onde veio a bofetada.

Os gregos tinham uma palavra que definia as verdades inquestionáveis: dogma. Os dogmas não precisavam necessariamente ser verdadeiros, mas era preciso que eles fossem entendidos como verdade. Com o devido tempo e reforço, os dogmas eram assimilados pela cultura local e passavam a fazer parte do senso comum. Já não era preciso pensar.

Peço licença hoje para falar menos de tecnologia e mais de crenças. O tópico em questão é uma dessas ideias que aprendemos a tratar como verdade, que nos inspira como sociedade e que, mais recentemente, ganhou um reforço de peso na sua promoção e defesa através dos coaches: a meritocracia.

Para entender a ideia da meritocracia, precisamos voltar para a primeira metade do século XX. Em 1931, no seu livro The Epic of America, James Truslow Adams, criou o termo “o sonho americano”: nos Estados Unidos, a terra da oportunidade, o sonho de uma vida plena era possível e dependia apenas da habilidade e do esforço das pessoas.

James Truslow Adams nasceu em uma família rica de Nova Iorque. Graduou-se na New York University e fez mestrado em Yale, duas das melhores universidades americanas. Foi banqueiro e, com apenas 34 anos, já havia acumulado economias suficientes para viver de renda. Decidiu, então, dedicar-se à carreira de escritor. Foi um intelectual importante nos Estados Unidos. Um de seus livros, The Founding of New England, ganhou o prêmio Pulitzer em 1922. Nove anos depois, o The Epic of America se tornou um dos dogmas da cultura americana. Desde a sua publicação, o sonho americano passou a ser uma ideia amplamente utilizada por líderes de ambos os espectros ideológicos como modelo de vida: esforço e trabalho duro eram os elementos necessários para a prosperidade.

Mas, para Adams, a sociedade americana permitia mais que apenas o acúmulo de dinheiro. Era possível que homens e mulheres chegassem ao máximo que as suas capacidades permitissem. Eles seriam reconhecidos por seus pares pelo que eram de fato, e não pelo lugar de onde eles vieram ou pelas circunstâncias que tiveram de enfrentar. Vencer a pobreza era algo possível e relativamente simples: bastava aplicar a fórmula de determinação e trabalho. Mas para que toda essa lógica se sustentasse, era necessário algo muito importante: mobilidade social. A sociedade precisaria permitir que uma pessoa nascida de uma família pobre conseguisse se libertar da pobreza e subir a escala social em direção a uma vida mais digna e menos restrita.

Alguns anos depois do livro de Adams, em 1958, outro escritor, o sociólogo inglês Michael Dunlop Young, quis contribuir para o debate criticando o modelo de educação britânico. Ao contrário de Adams, Young optou por escrever uma ficção em formato de sátira. Ele chamou o seu livro de The Rise of Meritocracy (A ascensão da meritocracia). Na história, Young criticava o surgimento de uma sociedade no qual inteligência e “mérito” eram exclusividade da elite, o que acabava por agravar os problemas das pessoas menos privilegiadas da sociedade. Young foi responsável não só pela criação do termo meritocracia como conhecemos hoje, mas também pela denúncia de que a mobilidade social não podia ser assumida como verdade num contexto onde esforço e mérito eram os elementos que determinavam o sucesso.

Por ironia, ao invés de alertar as pessoas para a fragilidade da ideia da meritocracia, o livro de Young acabou por popularizar o conceito. E, assim como ocorreu com a ideia do sonho americano de Adams, a meritocracia de Young também passou a ser defendida por líderes de ambas as cores políticas: da conservadora Margaret Thatcher ao trabalhista Tony Blair. Sonho americano e meritocracia se fundiram no imaginário popular: chegar lá, seja onde for, só depende do seu esforço. Se você ainda não chegou, é por culpa sua que não se aplicou o suficiente. O dogma se fortalece.

Em 2012, cinco décadas depois da meritocracia de Young e mais de oitenta anos depois do sonho americano de Adams, a maré começa a virar. O Conselho de Assessores Econômicos, uma agência norte-americana vinculada à Casa Branca, fez uma apresentação ao então presidente Barak Obama. O objetivo era mostrar os resultados de vários estudos econômicos indicando que a desigualdade social era um obstáculo para as pessoas melhorarem de vida. As pesquisas científicas sérias nas áreas de ciências sociais se apoiavam em dados contundentes que desmontavam os dogmas da meritocracia. As evidências começavam a explicar o que se via na prática: que o sonho americano era só mais uma fantasia. De uma forma mais concreta: quanto mais desigual o país, menor a mobilidade social. O resumo desta apresentação é um gráfico (ou curva) que foi batizado como a curva do Grande Gastby.

A curva é bem simples: o nível de desigualdades dos países num lado e, do outro, a facilidade de uma pessoa nascer em uma classe mais pobre e conseguir subir a uma classe mais rica durante sua vida. O melhor modo de entender este gráfico é pensando da seguinte forma: os pontos representam países. Quanto mais para a direita o país estiver, mais desigual é sua sociedade. E quanto mais para cima, mais difícil é para uma criança deste país nascer pobre e morrer menos pobre.

A inspiração para o nome da curva, aliás, veio do livro O Grande Gatsby, clássico da literatura mundial, escrito pelo americano F. Scott Fitzgerald. O livro conta a história de Jay Gatsby, uma figura misteriosa que conta ter subido na vida com muito esforço. Ele busca respeito e reconhecimento social, mas não é aceito por não ser parte da elite tradicional. Gastby tenta comprar seu acesso à alta roda com festas e ostentação, mas acaba tendo seu passado desmascarado. Não poderia haver um nome mais adequado ao gráfico: o sonho americano de mobilidade social é muito mais provável de acontecer na Noruega que nos Estados Unidos, e bem mais difícil no Brasil na comparação com quase todos os países da curva, exceto China e Peru.

O principal problema com a ideia do sonho meritocrático americano é que ele exige condições que não são possíveis. Para falar em meritocracia, é preciso falar, antes, em igualdade de condições. Afinal, uma corrida só é justa se todos os participantes partirem do mesmo ponto. Se alguém tem uma vantagem – ou uma desvantagem – considerável, a competição se torna irregular na origem. Mas, mesmo numa situação hipotética onde fosse possível garantir igualdade a todos na partida, não é possível garantir igualdade durante a corrida. E é isso que a curva do Grande Gastby ilustra tão bem: há elementos incontroláveis que independem do esforço individual de qualquer pessoa, por maior que seja.

Imagine, por exemplo, que você é um empreendedor no ramo de turismo. Seguramente a pessoa mais esforçada do Brasil, você estudou muito, aproveitou todas as oportunidades, deixou de ir a vários eventos sociais menores para dedicar o seu tempo integralmente ao seu projeto de montar uma empresa de viagens. Poupou cada centavo. Disse muitos nãos durante sua vida para tudo que te afastasse minimamente do seu goal. Você ralou muito e tem mérito! Você merece chegar lá, certo? Imagine também que você conseguiu, em janeiro de 2020, concluir o seu plano de negócios, juntar o capital necessário para transformar o seu sonho empreendedor em realidade. Você aluga um espaço em um shopping center de luxo e inicia a obra para abrir a empresa. Seu plano é ter a empresa pronta em fevereiro. Tudo corre bem, afinal de contas, você está em cima dos trabalhos, acorda cedo e dorme tarde todo dia acompanhando a obra. Dia primeiro de fevereiro, um sábado, você inaugura sua empresa de turismo. Dia 26, ocorre o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. O mercado de turismo entra em colapso.

Ninguém questiona o seu esforço. Você fez absolutamente tudo o que estava ao seu alcance e investiu toda a sua energia. Mas, apesar disso, há elementos que estão fora do seu controle. É claro que o seu esforço é louvável. Mas ele, sozinho, não garante o sucesso do seu empreendimento. Sucesso, aliás, é um termo cruel. O sucesso da sua empresa não é uma medida do seu valor como ser humano, nem mesmo como profissional. Eventos inesperados – o que alguns chamam de sorte, ou azar – ocorrem. E nem sempre é possível se preparar para as consequências destes eventos. Por mais esforço, conhecimento, ou zelo que você tenha. Como disse Rutger Bregman em seu excelente Utopia para realistas, “no fim das contas, apenas uma fração da nossa prosperidade é resultado apenas do nosso esforço”.

Apesar de tudo, há ainda quem acredite no poder meritocrático ou na falácia do sonho americano. Naquele farol que “as verdinhas” representam tão bem. E, embora as evidências mostrem que, para a esmagadora maioria a prosperidade está cada vez mais distante, alguns pensam que quem não chegou lá ainda não se esforçou o suficiente. A realidade, entretanto, é sábia e nos mostra o contrário. Ela não tem nenhum respeito por dogmas. Nem mitos.

Alisson Sellaro é gestor de tecnologia e cientista de dados.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.