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Dados num mundo pós-verdade #2: A Constituição como referência

Constituição Federal, tão falada e tão pouco compreendida, é excelente referência para sair do mundo das opiniões de Internet e analisar a realidade social
POR Alisson Sellaro
Foto: Agência Senado

No primeiro artigo desta série, conversamos sobre a diferença entre opinião e fato. Lá, falamos que as opiniões são, em geral, baseadas em elementos que não são necessariamente objetivos, mas que expressam as preferências de alguém. Comentamos que uma análise objetiva, por outro lado, precisa de algo que estabeleça uma referência. Só após definirmos este parâmetro, faz sentido fazer comparações entre resultados. Se você ainda não leu o primeiro artigo desta série, peço que você o faça antes de continuar neste artigo.

Na nossa conversa de hoje, quero sair rapidamente do tema de ciência, tecnologia e dados e fazer um rápido passeio no que nos define de modo mais fundamental enquanto sociedade: a nossa Constituição Federal (que abrevio aqui para CF). Já deixo minhas desculpas aos estudiosos de Direito Constitucional. A intenção deste artigo é relembrar alguns pontos importantes sobre a lei máxima, e não analisá-la do ponto de vista de um especialista do Direito.

“O quê? Você vai falar sobre Direito e política?”, você pode perguntar. Minha resposta é um sonoro “não”. Vou falar de ciência de dados e tecnologia. Mas, como no exemplo do primeiro artigo, precisamos estabelecer um parâmetro objetivo para sair do mundo das opiniões e entrar no universo dos fatos.

Para isso, vou utilizar elementos do Direito – a CF, no caso – como nossa referência. Vamos nos contextualizar com esse instrumento da nossa democracia, olhando para o histórico e as intenções. Essa abordagem faz sentido, porque não há outro alicerce mais adequado para analisar questões sociais de um ponto de vista objetivo do que a CF.

Antes da CF de 1988, o Brasil era regido pela Constituição de 1967, que tinha sido preparada por ordem do Ato Institucional número 4 (AI-4) e recebido uma mega-emenda em 1969. O objetivo do AI-4, e da Constituição de 1967, era legitimar o governo militar no Brasil, que até então vinha gerindo o país à margem da carta magna então vigente – de 1946.

A Constituição de 1967 foi elaborada pelo Congresso Nacional esvaziado de qualquer oposição ao regime militar. Portanto, uma Constituição feita sem a representatividade de setores da sociedade que não estivessem em acordo com o então governo do General Humberto Castelo Branco. A carta de 1967 começou sua vigência junto com o governo do General Arthur da Costa e Silva, um dos períodos de maior repressão dentro da ditadura militar brasileira.

Acelerando em 20 anos o tempo, o desgaste da ditadura no Brasil permitiu a aprovação, em 1985, de uma emenda à Constituição de 1967 que permitiu a elaboração de uma nova Carta Constitucional.

Em 1986, mais de 69 milhões de brasileiros votaram na primeira eleição direta depois do período da ditadura militar no Brasil. Foram eleitos 487 deputados e 49 senadores. A este grupo, se juntaram 23 senadores com mandatos em curso e foi formado um grupo de 559 parlamentares responsáveis pela elaboração de uma nova Constituição. Ao contrário do grupo Constituinte de 1967, esta nova Assembleia contava com representantes da oposição, além de vários outros segmentos da sociedade anteriormente excluídos do processo de criação da lei máxima do país.

A atual Constituição Federal do Brasil

Os diversos pontos de vista representados na Assembleia Constituinte de 1988 foram importantes para dar legitimidade ao novo alinhamento legal do país. Um dos objetivos do grupo de legisladores foi restabelecer os direitos individuais, que haviam sido restringidos durante o período da ditadura. Além disso, houve uma extensa discussão para direcionar o Brasil para um modelo de Estado de bem-estar social, com cláusulas na CF que combatessem a histórica desigualdade social, melhorassem os níveis de educação, saúde e outros elementos sociais básicos.

É importante lembrar que o texto constitucional de 1988 também prevê a existência de propostas de emendas constitucionais (PEC), um mecanismo de correção da própria CF que está definido no art. 60. Em resumo, o presidente da República, pelo menos um terço dos deputados, pelo menos um terço dos senadores ou a metade das Assembleias Legislativas podem fazer propostas de emendas à Constituição.

As PECs são votadas tanto pela Câmara dos Deputados, quanto pelo Senado Federal, e necessitam de aprovação por maioria ampla (3/5 ou 60%) em ambas as casas para serem aprovadas. Uma vez aprovadas, as emendas passam a ser parte da Constituição. A única exceção a este processo são algumas cláusulas que não podem ser excluídas de modo algum, apenas melhoradas: as cláusulas pétreas. Essas incluem a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e as garantias individuais. Até a elaboração deste artigo, já foram aprovadas 110 emendas à CF.

A CF de 1988 é a referência correta para as nossas análises. É um instrumento democrático e plural, elaborado por legisladores eleitos diretamente pela população. Define as obrigações do Estado e dos cidadãos, além de prever um processo claro, e também democrático, para ajustes. Pautar análises racionais dentro do determinado pela CF é algo não só necessário, como a única forma possível dentro do Estado de Direito.

Estabelecida a nossa referência, no próximo artigo iremos iniciar nossa análise objetiva de elementos sociais. Vamos começar com um tema importante: educação. A proposta é analisar alguns indicadores com base no texto constitucional e entender melhor como estamos progredindo – positiva ou negativamente – neste tópico.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.