Bemdito

A missão do dramaturgo

O fantasma do palco paira sobre a cabeça dos escritores teatrais; é preciso assassiná-lo para que a imaginação literária possa viver
POR Alan Norões
David Garrick as Richard III (William Hogarth)

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a construção do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen, “A forma justa”

Preciso discordar de Dürrenmatt quando ele afirma, num livro previsivelmente ainda não publicado no Brasil, que a arte de escrever peças “não começa com o planejamento de um determinado rebento, mas inflama-se pela decisiva possibilidade de poetizar com o palco [mit der Bühne zu dichten]”, em Theater: Essays, Gedichte und Reden (Zurique, 1980). E divirjo do escritor suíço por entender que esses estrados banais onde se pisa, ao invés de engrandecer, apequenam o ofício da dramaturgia e, em última instância, o próprio teatro. É que essa palavra, que a filosofia teatral alimenta, é, desde a mais comezinha acepção, um lugar com qualidades atreladas à realidade física: das plateias sentimos o cheiro das tábuas, ouvimos o som que ricocheteia no teto e às vezes vemos a crua parede ao fundo com aberturas que dão para o nada. 

Nesse ambiente de extensões específicas e dimensões fincadas no comum, outros mundos são, claro, gestados e, por fim, apresentados; mas o corpo humano defronta-se com essa limitação aterrorizante e brutal. As caixas cênicas, todos sabem, não são irrestritas; entretanto, as obras de arte, e isso nem todos parecem saber, deveriam, ao contrário daquelas, ser infinitas, aliás, propositalmente infinitas. Só assim, no inalcançável, é que o teatro vale a pena; apenas no momento em que nada mais lhes pode tolher a expansão é que as artes teatrais — e especialmente a dramatúrgica, que nos interessa aqui — dirá algo impressionante a respeito do mundo.

Se essa verdade é óbvia para os seres humanos do século XXI, não o era até pouco tempo. Foi a partir dos anos 1950 que mudou, ou melhor, decaiu o status do escrito, e, com um tal deslocamento, intensificou-se a proeminência da representação e da direção. “Quando o espetáculo prevalece (…), os textos dramáticos perdem toda necessidade e toda especificidade”, registra Ryngaert, em Ler o teatro contemporâneo (São Paulo, 2013). A essa altura já se haviam esfarelado também as seguranças do drama moderno, de maneira que, como mostra Peter Szondi – em Teoria do drama moderno [1880-1950] (São Paulo, 2011), se destruíam, na relação dialética entre forma e conteúdo, a centralidade do diálogo, a primariedade da sua narrativa, a sucessão de presentes, a unidade de localização e o mais que o singularizava. Desse modo, retirou-se das pessoas autoras, com a ajuda delas mesmas, deve-se frisar, tudo o que tinham: o totalitarismo e o palco, dois tentáculos de uma única fera. Sem o poder violento sobre o universo da cena e sem espaço vital para exercê-lo, não parece ter restado mais nada. De escritores passaram a escriturários de um mister que dependia do artesanato exercido exclusivamente no presente da apresentação.

Nesse contexto, instruções sobre como proferir uma frase são um acinte; indicações cenográficas, um estorvo; descrição de personagens, um disparate. Palavras, então, se tornam um mal quase desnecessário, e às vezes por inteiro dispensável. Qualquer coisa, enfim, que se deixasse gravar, ainda que no colo hospitaleiro e maleável do papel, parecia esculpido em pedra, degenerando a experiência do tempo e, desse jeito, inviabilizando que haja corpos emanando luz diante de um público. Se escrever talvez seja mesmo uma intromissão no trabalho da equipe, cuja independência e individualidade vivificam o teatro, então aos agora despossuídos, vilipendiados pelo fardo da submissão a outros profissionais nesse, veja bem, esforço coletivo, sobrava unicamente a tarefa de apagar a luz da sala de ensaios ao ir embora. Mas é evidente que ninguém dotado de inteligência criativa e vontade de refletir acerca de nossos tempos em profundidade pensaria em tão ultrapassados termos sobre transformações que já estão sedimentadas e muito imiscuídas no âmbito das artes cênicas atuais. 

A prática, senhora da teoria, desmente a suposição. O tablado, agora assassinado, assoma-se no horizonte como espectro, para assombrar quem se dedica, quer por imperativos meramente literários, quer por obrigações empregatícias, quer por ambos, a gestar uma dramaturgia. Mesmo hoje, ainda se escreve para o palco. Quero dizer que, diante de sua terrível missão, o autor incorpora a mentalidade de todos e qualquer um dos responsáveis pela materialização do espetáculo em cena, menos a única essencial, isto é, a dele próprio. Daí resulta a plena artificialidade teatralesca; nada parece verdadeiro, porque afinal não é. Os personagens, se houver, são figuras a serem reproduzidas por atores; as ações, se houver, reduzem-se a movimentos a serem executados por humanos ou por meio deles; o cenário, se houver, coincide apenas com o que se vê ou com o que se aponta; a língua portuguesa, se for ela a escolhida, fornece a matéria-prima a partir da qual se enfileiram vocábulos amorfos, independentemente de simplicidade ou rebuscamento; e a experiência artística se torna, ali no princípio, um esquema operado por autômatos.

Em resumo, o teatro se iguala, e se sujeita por inteiro, ao espaço onde acontecerá aquele evento único. Porém, ao contrário do que a pressa talvez faça crer, não é, por exemplo, a quantidade de orientações sobre a trilha sonora ou a total ausência de estrutura dramática que devem ser observadas para distinguir esse tipo de obra; é possível redigir textos cujas rubricas não diminuem uma ácida percepção sobre a existência e compor peças supostamente contemporâneas que, em verdade, foram paridas já caducas ou anódinas. Não se deve condenar a priori nenhuma ferramenta, porque nossa preocupação tem de se voltar às instâncias que fundamentam e impulsionam a criação literária. Uma delas, e a que quero tratar neste ensaio, é a imaginação.

Enquanto autores de prosa ou poesia dão por certo que entre eles e os leitores só os põem em aliança o sonho e a vastidão do silêncio, os dramaturgos foram educados a pensar que os espectadores, depois de terem encontrado o número da cadeira marcada no ingresso, carecem de estímulos visuais e auditivos, às vezes também táteis, para evitar ao máximo que se percebam defrontados com o tédio análogo ao de ler romances. Esse pensamento ignorante perde de vista que, em literatura, não há dois tipos de tédio mas apenas um, nem dois tipos de imaginação mas apenas o que intoxica o fruidor a tal ponto que ele se sente desorientado, impotente, perplexo — e por isso mesmo novo. E o ápice do engenho na arte é quando se consegue não pela imposição manipulativa e vã, mas pelas engrenagens intrínsecas do texto, quase como se nada estivesse de fato se desenvolvendo, que a plateia seja, ao final, diferente. Supondo que artistas não sejam cínicos e ainda tenham o sincero desejo de demolir nossa sociedade canalha, será inútil tentar alguma outra forma de chegar aí senão pelo mesmo solo semeado em que se frutificam os versos e de onde brotam os parágrafos. Assim como todos os romances e poemas têm um profundo sentimento de completude, uma fome que devora e devora, as peças de teatro também urgem que se deixe entrar, para aninhar-se em seu âmago, absolutamente todo o universo, inclusive o intempestivo; ah, e são imprescindíveis também o incongruente e, por que não, o inóspito.

As melhores dramaturgias se tecem, num instante singular, sob a pressão atmosférica de Júpiter, o calor do meio-dia em Fortaleza e o cheiro das andirobas da Floresta Amazônica. E, no fim, o que o texto teatral requer para ser mais teatro é palavra pneumática, como diria Novarina, e imaginada, sem que, nessa simbiose paradoxal, nada exterior pareça existir no momento da composição. Todo dramaturgo deve partir do pressuposto, como os poetas, que nunca será lido e que o empenho redundará inócuo. Por isso os palcos e os formulários, os atores e os holofotes que, não sendo matéria mesma da peça, se interpuserem no caminho da imaginação lançam trevas ao percurso e tornam o produto um natimorto. Ao andar por esses campos nos quais se encontram as melhores proezas humanas, trilhamos por veredas não apenas inacessíveis, mas também impossíveis. Nosso papel é alcançar o que não se pensava exequível, desobedecer às placas que não permitem cruzar. Então, talvez desembarquemos lá do outro lado, no sagrado: o repúdio total ao religioso; a religação com o que há de mais imperfeito e profano do humano. 

Peço o conceito (e o deturpo) de empréstimo a Peter Brook – no livro The Empty Space (Londres, 2019), que apontou a desritualização do teatro no capitalismo tardio. Não sei ainda se estou de acordo com o diagnóstico segundo o qual as casas de espetáculo de hoje em dia não são mais templos em que se vai para ver o invisível através da carne presente dos atores, mas é fato que a primeira linha de qualquer dramaturgia é o estabelecimento de um pacto sagrado e portanto demoníaco cujas cláusulas anunciam que vamos todos libar a Dioniso e celebrar o país da alegria com aquelas máscaras. Não vejo sentido no teatro que não seja nem queira ser uma comemoração à vida e que, sendo assim, não se converta num rito fatal. Lemos dramaturgia para morrer vivos; vamos assistir a uma encenação para morrer vivos. Mas essa liturgia à qual se atribui um caráter encantatório e uma feição abismal só é adjetivada assim se nos fizer crer que, na travessia, os elementos dispostos para sua realização, sejam quais forem, têm raízes profundas em nós mesmos, porque integram o maquinário afetivo da nossa própria imaginação. Os orixás ou o cordeiro de Deus estão em cada centímetro do que somos, e a prova disso ou bem se permite revelar no evento sagrado ou então não serve para nada — e é artifício e mentira.

Por isso o desencantamento do mundo não aniquilou a renovada oportunidade que se firma com esses contratos noturnos. Os públicos combinaram de erigir uma catedral feita de efervescência e furor, e os dramaturgos concordaram em fazer o necessário e o urgente para que o teatro possa se despir de tudo, mesmo das entranhas reviradas, mesmo dos ossos calcificados, menos daquilo que é sua única razão de ser. Não gostaria, porém, que minha ideia fosse entendida como abstração inócua. Ela tem para mim um sentido muito prático. Vejo um homem e uma mulher sentados, e eles podem ser todos os homens e mulheres do mundo, agora. Teatro é olhar para essas pessoas e vesti-las pela imaginação num ritual sagrado.

Gastei talvez muitas palavras, mas poderia ter citado apenas Teseu em Sonho de uma noite de verão: “As melhores [peças] do gênero não são senão sombras; e as piores não serão piores se a imaginação as corrigir”.

Alan Norões

Escritor e revisor de textos, publicou "Os senhores repararam que a viscondessa de Mataburros é uma porca?" (2020).