Bemdito

O que aprendi com o Diabo

Antipatias à parte, o Diabo foi e é uma musa literária como poucas de que se tem notícia
POR Dellano Rios
Jan Matejko

Pelo hábito da profissão, costumo ler as notícias. As boas, as más e as que dão acesso. Sei que fome, peste, morte e, agora, guerra cavalgam por aí. Não seria uma surpresa, portanto, se trombetas ribombassem dos céus e a casa caísse para todos nós. 

A temporada não é das melhores, é evidente. Mas nada que deva nos levar a recorrer à medida drástica e terrível do otimismo. Antes que lancem a acusação de contradição, ou mais radical, de paradoxo, é oportuno buscar uma definição sincera desta “doença intelectual”. É ela, pois, “a doutrina, ou crença, de que tudo é belo, incluindo o que é feio, de que tudo é bom, incluindo o que é mau, e de que tudo está certo, inclusive o errado”. 

A definição é do verbete que consta no “Dicionário do Diabo” (1911), centenário léxico assinado pelo escritor e meu colega de armas de jornalismo Ambrose Bierce. Contudo, sua fonte e inspiração é outra, como o título do livro entrega. 

A despeito da má fama do Anjo Caído, recorrer a sua sabedoria não é necessariamente um disparate. Estamos ameaçados pelo Apocalipse, sem metáforas, porém, não há como nos socorrer nos domínios do Bem, hoje sequestrado por coachs, gifs matinais animados, graffitis deboístas, textões de autoajuda e gente que escreve “resiliência” e se despede com “gratiluz”.

Faça vista grossa a cornos retorcidos, calda em forma de seta, body painting encarnado, sacrifícios humanos, fedor de enxofre, comércio de almas e danação eterna. Antipatias à parte, o Diabo foi e é uma musa literária como poucas de que se tem notícia. Inspirou, com regularidade, obras que se tornaram canônicas, ricas em sabedoria sobre os assuntos humanos.

No poema trágico “Fausto” (1808/1832), de Goethe, Mefistófeles apresenta, com relativa humildade, suas credenciais. “Eu não sou onisciente, mas sei um bocado”. Reconheça: é mais do que as redes sociais, as correntes do WhatsApp e os especialistas pop têm a nos oferecer. 

Não foi apenas a duvidar do otimismo o que aprendi com o Diabo. Em seu “Dicionário”, desde já a mais didática e espirituosa obra de uma biblioteca satânica, ele também diz da vulgaridade do pessimismo, disposição preguiçosa e meramente reativa, que se impõe como contrapeso ao otimista, “com sua esperança de espantalho e seu sorriso sem graça”.

A esta altura, já temos razões suficientes para abrir espaço nas estantes, uma prateleira que seja, e destiná-la a Satanás. Goethe e Bierce, claro, devem estar lá. “O Paraíso Perdido” (1667) também. Foi no poema de John Milton que se conheceu a versão do Diabo da querela que acabou por expulsá-lo do Paraíso. “É preferível reinar no inferno a ser escravo no céu”, justificou-se outrora anjo de luz. 

William Blake, poeta inglês, que via coisas, como o monstruoso fantasma de uma pulga, nos apresentou 69 provérbios do Inferno, em seu  “O matrimônio do Céu e do Inferno” (1793). Sabedoria hermética, incrustada de poesia.  “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”, diz aqui; “quem deseja, mas não age, gera a pestilência”, ensina acolá.

Tendo caído na luxuria, seduzidos pelo prazer da leitura, podemos começar a tomar o Diabo por um sujeito melhor do que de fato é. Generoso, desinteressado até, capaz de escrever certo com seus garranchos. No “Fausto”, em outro momento de humildade, ele confessa que, ainda que seus propósitos seja maléficos, seus feitos terminam por escoar no Bem.

A alcunha a ele atribuída, de Pai da Mentira, fundamentada ou não, plantou para sempre a dúvida quanto a seu caráter. Envenenadora de amizades, a desconfiança nos fará procurar momentos em que meteu as patas pelas mãos e seus cascos vacilam sobre o chão. Não poucas vezes, em suas aparições literárias, ele se dedicou a atormentar pobres-diabos, sujeitos já assolados por infortúnios como o da loucura.

Assim, ele assombrou ocasionalmente o esquizofrênico juiz Daniel Paul Schreber, conforme o mesmo relatou em “Memórias de um Doente dos Nervos” (1903); apareceu em vestes medievais para o dramaturgo sueco August Strindberg, também acossado por males nervosos, como visto em seu livro “Inferno” (1879); e atazanou o professor Ardalión Boríssytch Peredónov, um tipo bolsonarista russo, no romance “O Diabo mesquinho” (1905), de Fiódor Sologub.

Atormenta, por fim, a nós mesmos, que com ele aprendemos e que dele agora desconfiamos. Mas que saída nos resta? Renunciar ao banquete literário que nos serviu e voltar à ração hipoproteíca do otimismo ou, com o mundo caindo aos pedaços, sentir a boca amargar de pessimismo e desespero? 

Deve-se voltar às palavras de Tom Waits, o sinistro cantor e compositor norte-americano (que, coincidente e oportunamente, já interpretou o dia em um filme). “O mundo”, no lembra, “é um lugar infernal, e a escrita ruim está destruindo a qualidade do nosso sofrimento”. Se você ouviu o rumor de uma gargalhada, não tem porque duvidar que seja outro sujeito, que não o Diabo em pessoa, que se entrega ao escárnio.