Bemdito

Aprendi mais com uma queda do que no jantar do Atala

Quando é preciso quebrar a cara para entender a importância de se desconectar, sair do automático, respirar, ouvir
POR Paula Brandão
Ilustração: Alice in Wonderland (1951), de Mary Blair

Libriana, ascendente em touro – meu filho diria, lá vem minha mãe com essas besteiras –, a cada voo, eu procuro me certificar que haverá um pouso firme do outro lado. Sempre que ia viajar, organizava bagagens extras para tudo o que podia acontecer de errado. Na verdade, para ter conforto e controle, longe do meu ninho. Viagem não é previsível. Por mais que se organize, tem o fator desconhecido, surpresa, que foge ao controle. A lei é de ruptura com a normalidade e deixar o caos surpreender. 

Há dois anos, resolvi passar meu aniversário em São Paulo. Restaurante desses porretas, do Alex Atala, reservado com 2 meses de antecedência, tudo organizado. Na correria desse dia, e na pressa de tomar um café antes da palestra que assistiria, de Christian Dunker, eu tropecei nas minhas botas, ao descer uma pequena escadaria, e caí de cara no chão.

Eu sou daquelas que vive tropeçando do nada, mas nunca tinha 8 degraus no meio do caminho! Havia sangue pra todo lado, lugar cheio de gente me olhando com rostos de assombro, e eu só pensava: pela expressão delas, já era! Vivi aqueles segundos que você repassa uma vida, e pensa que morreu bestamente, afinal, já soube de muitas mortes em acidentes bem mais simples que o que tive.

Lembro que ali sentada, sozinha em meio a uma multidão que aguardava a palestra, perplexa em como aquilo aconteceu no dia do meu aniversário, rapidamente, me vi diante de duas opções: desespero ou profunda quietude. Sempre escolho a última. Pensei que, enfim, o pior que podia me ocorrer tinha acontecido e eu compreendi que não precisava temer mais nada. Ao ser acolhida por uma mulher, que disse que eu ficaria bem, acreditei mesmo que sim, e que tudo ia ser resolvido, fiquei calma, e uma paz me invadiu de modo avassalador. Todo aquele medo passou. Eu era capaz, desde o início, de lidar com as intempéries da vida, e nunca mais viajaria com malas sobressalentes, pois nada que portava nelas me ajudaria diante daquele imprevisto. 

Ao ler Nilton Bonder, em A arte de se salvar, parecia que sua teoria coadunava com minha experiência ora vivida. Não conseguia olhar aquele fato como algo ruim, palavra que se usada, se fazia permanente. Me pareceu amargo, que é uma palavra sensorial, é a possibilidade de revés, portanto, o remédio “amargo” para a cura. Parece difícil crer, mas a minha queda foi a minha ascensão ao mesmo tempo. Aquela interrupção abrupta nos meus planos me mostrou que a vida pode sair do orquestrado, é pura contingência e que eu não tinha controle de nada. E que para estar conectado nesse mundo, é preciso, às vezes, se desconectar, sair do automático e reassumir os rumos com mais clareza. Parar – respirar – ouvir. Assim é que, em profunda conexão comigo mesma, recebi o meu presente do universo: quebrei a cara no dia do meu aniversário.

Foi por meio dessa experiência que me dei conta que estava fazendo tudo automaticamente, num ritmo frenético. Quando levei essa queda, foi meu primeiro contato com uma quarentena. Ao longo de quinze dias, me dei um tempo para pensar e descansar. Me apeguei fortemente à minha cama, passei longos momentos deitada, lendo, pensando e estudando. Quis – e precisava fisicamente – ficar afastada de todo o barulho e da correria.

Senti como se estivesse descansando profundamente enquanto meu corpo se recuperava, lambia a ferida do meu tombo. A queda foi aceita como sendo um dos truques do universo para me lembrar: ei, garota, você não controla nada, há coisas que passam longe da sua compreensão. 

E, recorrendo mais uma vez a Bonder, compreendi que o despreparo para a vida torna-se mais evidente quando tentamos controlar o caos e ordenar tudo. Dar ordem ao caótico. Diz ele que a vida é como deve ser e não como gostaríamos que ela fosse. Dessa luta de braço, é bom que se aprenda logo, que não sairá ganhando!

O autor concebe que a vida tem necessidade de pausas, grandes e pequenas. Uma queda é uma pausa. Temos que honrar as paradas como uma experiência. E vê-la como uma oportunidade para soltar o leme do barco, e desfrutar o caos como parte da vida, e não intruso à ela. É uma assepsia das nossas feridas, com um elemento de cura. Mas é claro que as pessoas reagem de modo diferente: a lagarta é a borboleta, mas a ordem da borboleta não é a mesma da lagarta. O voo diferencia radicalmente a experiência das duas!

Nas grandes paradas que se interpõem aos nossos desejos, nos deparamos com a complexidade da potência da vida e, ao mesmo tempo, a tenuidade dela. Quando planejamos e perdemos o controle dos acontecimentos, transmutamos a ordem em caos e precisamos de certo tempo para que os acontecimentos se reorganizem. Da minha experiência de segunda pausa obrigatória, sem meu aval, dessa vez, na pandemia, digo: não tenha pressa! Esses intervalos podem ser restauradores.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).