Bemdito

Domingo, na esquina que dá para o bar

O que um bar tem a contar sobre um dia de domingo?
POR Felipe Pinheiro

Da esquina vejo o bar e o ânimo cauteloso das vésperas de segunda. Vejo a rajada das 15 horas assoprar o calor do calçamento, que desde as 10 da manhã ardia miragens. Vejo as mulheres e os homens, trabalhadoras e trabalhadores, espremendo-se e zumbindo nas mesas em um ávido enxame. 

Vejo a cordilheira de garrafas entrecortando as mesas. Vejo a alegria humilde pela graça de existir e a tristeza resignada pela monotonia de estar vivo, dissolvidas na fumaça de cigarro e no vapor das panelas ferventes. 

Vejo a dona do bar engrossar o caldo, afinar o pirão, raspar o tacho, separar nas sobras o que vai para o lixo e o que vai para o cachorro, que monta guarda na porta, em faminta paciência, agoniada disciplina. A vejo conter o Vesúvio no fogão e escalar o Evereste na pia de louça, os braços torneados a colher de pau e esponja de aço.

Vejo seu marido e sócio circular levando cascos, trazendo copos, varrendo cacos, repondo uma floresta em guardanapo, subindo e baixando o volume do som, atendendo clamores musicais, voltando a música da metade porque é bonita demais. O vejo afastar moscas e pedintes com um mesmo abano de mão, as canelas afinadas de andar continentes em um mesmo retângulo de chão.

Vejo o bêbado efusivo tomando para si a responsabilidade de alegrar, de fazer valer a soma da comanda, descartando na mesa irreverências ensinadas pelo álcool; e vejo o amigo cansado colhendo uma reação no copo antes de o corresponder com um sorriso. O sorriso vem trazido no gole.

Vejo a criança aborrecida pedindo para ir embora, o enfado, a lamúria, a frustração com o pai desinibido, o ressentimento com a mãe extrovertida, o insuportável de vê-los descompostos, irreconhecíveis, dançando, ridículos, rindo com todos os dentes; quando não ariscos, magoados, chorando com a boca inteira. A mecha de cabelo da mãe colada na testa empapada de suor, o zíper do pai esquecido aberto. E então, vejo o sono escapista da criança no colo ordeiro da tia solteirona. O bar treina a criança para ser filha dos pais que tem, incondicionalmente. 

No amarelo cálido da última hora de luz solar, conforme o dia derrete no poente, o domingo vai fugindo leviano, contra a vontade de quem a ele se agarra. Vão se espalhando os soluços de gula, os arrotos de empacho, os bocejos de rendição, os suspiros precoces da ressaca moral. O piscar lânguido das pestanas. O calçamento esfriando, o caldo coagulando nas panelas. O travor da saideira.

À primeira pincelada da noite no céu, acende no bar o clarão flagrante e recriminatório das fluorescentes, e a segunda-feira traz seu autoritário aviso prévio. Vejo o enxame, mesa a mesa, ir morrendo por falta de gole. Os dentes se escondem do sorriso, a boca tranca o pranto. Os donos do bar aferem o lucro em comanda paga e o prejuízo em copo americano quebrado. A criança acorda e corre para o carro, aliviada. Vai embora. A segunda trará de volta seus pais, sãos e salvos. 

Fica por lá o cachorro rueiro, empanturrado de sobras, mas lambendo ossos e pelancas, em seu triste e vitalício medo de morrer de fome.Com frequência, um dia tem cara de outro: quinta tem cara de sexta, sexta tem cara de sábado, terça tem cara de segunda. O domingo não. O domingo não tem gene recessivo. O domingo matou todos os seus sósias. Domingo só tem cara de domingo, sempre. O bar não me deixa mentir.