Bemdito

Masturbação: economia e sociedade

O autoprazer e masturbação como objetos de aviltamento histórico
POR Humberto Pinheiro
Foto: Charles Deluvio

O autoprazer e masturbação como objetos de aviltamento histórico

Humberto Pinheiro
hpf1808@gmail.com

Não se masturbarás em paz! Poderia ser um mandamento de deus. E é. De diferentes maneiras sempre foi. Seja essa divindade sublimada ou encarnada em teologias, governos, negócios, medicinas, histórias, tecnologias, sempre houve algum ou alguns preceitos a participar de uma masturbação, que nunca pode ser inocente ou em vão. Aliás, seria esse suposto alheamento fantasioso improdutivo que tornaria essa prática mais rejeitável e combatível. Mas é isso mesmo que ela não é, nunca foi, para especialmente ter sido e ser um problema religioso, médico, econômico. As fantasias e as improdutividades lhe atribuídas estiveram na medida em que discursos religiosos e científicos e suas ações faziam-se objetos de fé e de verdade. Todos fantasiam todos, portanto, ainda que poucos estejam mesmo se masturbando. E nunca estamos sozinhos, pois se não conseguimos pensar bem em algo, somos sempre pensados, desejados, mas não exatamente por outra pessoa, não na excitação “privada” de alguém. O flagra, aqui, é que ela não pôde ser mesmo um “vício solitário”, um gozo diletante. Também nisso há todo um fardo da história.  

A psicanalista Maria Rita Kehl já escreveu que, na sua experiência na análise, seus pacientes já não falam mais sobre masturbação. Na desconfiança dela, esse “silêncio” não viria de um sentimento de culpa cristão, por exemplo, mas de uma vergonha da representação do fracasso pessoal numa atualidade que cobraria sucesso e popularidade: “quem se masturba revela que não conseguiu ‘pegar’ ninguém”. Quem se masturba seria um perdedor. Veja como é difícil não ser incomodado para se tocar. Veja como é tamanha a tagarelice em torno dessa questão. Quem se masturba, aliás, não precisa falar, porque todos falam por ele, todos o fazem sem que ele tenha de mover um único dedo. Na clínica, por exemplo, já há muita verborragia sobre isso nos conceitos e nas pressuposições e condições profissionais da própria formação do médico e do analista, como havia para as figurações do poderio institucional cristão. O analista ainda é o sacerdote que quer a confissão do seu crente, mesmo que seja uma admissão só para si mesmo, que também quer fazer de qualquer coisa que fazemos ou friccionamos alguma narrativa de si, algum tipo de autorreconhecimento, apesar do “pecado” e do “desvio”. 

Se um dos motivos de toda censura religiosa e estatal à masturbação vinha da sua invenção como violação do sentido procriador do sexo, poucos engenhos foram tão férteis para a proliferação e diversificação de uma malha discursiva e de técnicas para a produção e controle da alma e da carne modernas, especialmente para o desenho institucional que tomou o nome de sexualidade, mais ou menos desde o século XVIII. Esse saber sobre o “comportamento sexual”, com seus investimentos na pedagogia do sexo da criança, no controle social da procriação, na psiquiatrização da mulher e do chamado “prazer perverso”, participou diretamente dos empreendimentos coloniais da modernidade, dando arcabouço científico ao poder patriarcal, com suas hierarquizações raciais e sexuais. A masturbação como um problema moderno está no escopo dessas patologizações, com um falatório que vai fazer essa intersecção entre o mal da carne que deseja do cristianismo e os distúrbios da psicopatologia. E é de uma grande campanha que falo, com várias frentes, como a que foi contra os “livros que se leem com uma só mão”. E muitas outras, aliás: contra tudo que se pode fazer com “uma só mão” ou com sua ajuda. 

Desde então não apenas uma falta moral, a masturbação inaugura a nossa modernidade como estratégia econômica e política de fabricação e gestão do social. Definir seus sujeito e objeto foi fundamental para uma organização do saber e seus domínios tecnológicos e simbólicos. Se ela pode ser o mundo como fantasia, ninguém a fantasiou mais do que o mundo, tirando todas as consequências imaginativas e práticas. Somos muito mais filhas e filhos de uma mão que se masturba, na verdade. Somos herdeiros do tato. Numa hierarquização dos sentidos no Ocidente moderno, os usos das mãos e do nariz foram bem rebaixados, principalmente em relação à visão. Pegar e cheirar nessa nossa ordem oculocêntrica, entre outras coisas, passaram a ser associados a uma condição mais animal. Conhecer seria ver, não tocar. Tal significação dos usos do corpo esteve como fator importante, claro, nesse regime de escritos e feitos da masturbação. Houve uma obsessão pelo controle das mãos, dando-lhe toda uma dieta física como inscrição do “desvio sexual”. 

Essa frugalidade na equação do toque e da carne contou com suas tralhas tecnológicas e sua perversidade instrumental. Para as mulheres, havia a calcinação da parte interna das nádegas ou do clitóris, além de cintas de arame e dos seus maridos, que estavam direta e indiretamente em tudo isso; para os homens, “uma capa dentada ajustável ao pênis”. Esses aparelhos eram presos às costas por cadeados cujas chaves ficavam com os pais, sendo tal controle parental logo facilitado com o uso da eletricidade e de baterias que reconfigurava o cotidiano de classe média urbana no início do século XX. Mas não demorou para que aqueles dentes e arames fossem substituídos por descargas elétricas ou por alarmes “que avisam em caso de ereção e de polução noturna”. As mãos como uma grande ameaça ao uso “correto” e “normal” de uma organização sexual do corpo fez parte de toda essa maquinação (milenar ou secular) do sexo e da sexualidade como nossa verdade. Por isso e por tudo, além de desconfiarmos das tecnologias, das presenças, das portas (quando há portas), das paredes (quando há paredes), precisamos ter muito cuidado com a família, com deus e com a pátria, porque, com ou sem masturbação, eles nunca param de fabricar os seus monstros.

Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.