Bemdito

Devemos ser produtivas para quem?

Como as instituições tradicionalmente masculinas atuam para dificultar a permanência de mulheres em seus espaços
POR Juliana Diniz

Como as instituições tradicionalmente masculinas atuam para dificultar a permanência de mulheres em seus espaços

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Quando as mulheres invadiram as portas que as impediam de integrar certos espaços, como os tribunais e as universidades, estavam certas de que sua chegada seria suficiente para realizar a igualdade. Os universos tradicionalmente masculinos foram forçados a nos tolerar e ao nosso desejo de produzir e intervir no mundo. O direito de acesso foi, contudo, uma vitória incompleta ou uma falsa vitória, e foram necessárias algumas décadas até descobrirmos que o problema não é apenas acessar, é conseguir permanecer.

Isso porque nossos pares homens resolveram que seria justo avaliar nossa performance pelas réguas que aplicam a si mesmos. Algo como: se você quer ocupar esse lugar, deve ser capaz de ser como eu sou, fazer o que eu faço, no tempo, na medida e da forma que sou habituado a fazer. Ou pior: se você quer ocupar esse lugar, deve abrir mão de certos luxos, como tempo para estar com seus filhos e educá-los, para respirar, se cuidar e viver.

O que nos foi imposto como condição de permanência nesses espaços foi um critério de performance que nossos colegas do outro sexo provavelmente não teriam capacidade de realizar: cumular tarefas de cuidado doméstico com a dedicação integral às metas de produtividade – aquela mensurável em tabelas, em pontos, em páginas escritas e palestras dadas. O que não pode ir à tabela, não é quantificável, não tem valor, não serve para ser avaliado – e esse déficit é implacavelmente utilizado como critério para julgar.

O resultado dessa lógica perversa é o adoecimento por exaustão ou o agravamento da desigualdade entre as mulheres – porque algumas têm o privilégio de delegar a outras o que não conseguem fazer. Por mais que nos esforcemos, sempre haverá algum momento da vida em que não será possível equilibrar tantos pratos – como uma pandemia, por exemplo. Imagine viver uma emergência de saúde pública que matou milhões de pessoas pelo mundo, forçou bilhões ao isolamento domiciliar, arrasou economias e interrompeu rotinas escolares. Na data esperada, acabando-se o mundo ou não, o burocrata estará esperando com o carimbo: colega, e os pontos da sua tabela?

Queridas leitoras, não se desesperem, porque as instituições são preocupadas com nosso bem-estar. Deixo-lhes um bom exemplo do Superior Tribunal de Justiça. No mês de comemoração da mulher, o STJ organizou uma rodada de oficinas e ciclos formativos para suas servidoras: no dia 15 de março, há uma oficina sobre rotina familiar e gestão do tempo; no dia 17, é a vez do planejamento de cardápios; em 22, homeschooling, sono da criança e tempo de qualidade.

Posso respirar sossegada! Em breve, todas os espaços institucionais devem oferecer o mesmo. Não correrei o risco de acabar o provável segundo ano de pandemia psicologicamente esgotada, angustiada com a alfabetização dos meus filhos ou com a saúde dos meus pais. Serei capaz de organizar o cardápio, colocar as crianças para dormir com perfume de lavanda e produzir belos artigos científicos. Os homens dormirão com as consciências tranquilas: são bons e justos e tolerantes (e muito simpáticos à fantasia de igualdade que criaram para ornamentar sua já pronunciada vaidade).

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.