A arte de chorar lavando louça
Uma crônica sobre o valor terapêutico de lavar louça e sobre os amores que se vão, mas nunca nos deixam
Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com
Aqueles anos foram loucos. Ter tanto sentimento mas não ter habilidade para vivê-los. As coisas já degringolavam há um tempo, só o sexo escapava, todo o resto ia ladeira abaixo. Decidi que, se não falasse sobre os problemas, pelo menos não agravaria a situação. O que sentíamos um pelo outro bastaria. Lá fora a cidade pegava fogo, literalmente. Eu saía de casa e dava a voz, cortava as forças, voltava pra casa e eram três ou quatro cadáveres a menos. Eu era bom nisso. Talvez o melhor. Mediava conflitos entre grupos rivais ou no mesmo grupo. Entrava e saia. Sempre ganhava. Em casa não conseguia dar uma única palavra. O silêncio era o melhor de mim. Eu era bom nisso.
Numa das poucas vezes em que parei em casa, olhei para a pilha de louças na pia e comecei a lavar. O sol entrava pela janela da cozinha e aquecia minhas mãos. Minha alma era fria. Ela chegou sorrateira. Subiu pelo meu pescoço até a orelha. Parecia uma serpente. Aquela boca. Aquela língua que dizia as palavras com precisão. A dicção perfeita de quem fez atendimento com fonoaudióloga. Sibila. Sussurra:
– Eu te odeio! Seu escroto! Odeio você! Se, nesse exato momento, dois homens começassem uma briga na rua, lá embaixo, você desceria, convenceria os dois a pararem de brigar, pegaria as armas e selaria um acordo de paz entre os dois. Você é essa pessoa. Capaz de mediar conflito na cidade inteira, mas incapaz de vivenciar seus próprios conflitos dentro de casa. Você senta a mesa pra negociar com o Satanás, se for preciso, e ainda arranca dele um acordo. Pra mim, o silêncio… Eu odeio você!
Não consegui dizer nada. O perfume que eu adorava agora era a lembrança de que ela havia partido. Na verdade, ela foi mas nunca me deixou. Continuei de pé (Deus sabe como..). Lavando a louça, a torneira que segura as lágrimas nos olhos se abriu, e eu não conseguia fechar. Não consegui ficar triste pela minha miséria. Só chorava e lavava a louça. Chorava e lavava louça. É dispensável dizer que a relação acabou, que eu não consegui falar o que sentia, que me enfiei de cabeça nos problemas da cidade, que ganhei indicações internacionais pela mediação de conflitos em Fortaleza, que fui bem sucedido em todas as mediações que entrei. Mas falhei na mediação mais importante da minha vida.
Todas as vezes que lavo louça, revivo esse momento, como uma maldição (hoje sem as lágrimas). Aqueles anos foram loucos. Ter tanto sentimento, mas não ter habilidade para vivê-los.
Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.