Bemdito

Beirando o encantamento

A fotografia sutil dos encantados, entidades, caciques e guardiões do mangue
POR Raisa Christina
Foto: Iago Barreto

A fotografia sutil dos encantados, entidades, caciques e guardiões do mangue

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

A planície do sertão alagoano aos poucos deu lugar ao aglomerado de morros sobre os quais corre um verde úmido que adensa a expectativa pelo gigante. Notei vasos salientes no antebraço de Marcos, que ora o estendia em direção ao volante, ora o suspendia indicando um sinal na paisagem, ora o inclinava, repousando a mão sobre minha coxa. As ramificações de artérias desciam largas pelo limiar da pele até o pulso. Era bela a imagem de seu braço tão bem nutrido de sangue. Estávamos a caminho do município de Piranhas, onde nos encontraríamos pela primeira vez com o Rio São Francisco.

Para quem nasce no coração árido do sertão cearense, na companhia de riachos estreitos que somem por detrás das pedras, bastam os rumores do encontro com o Velho Chico para grotas rangerem nos cantos dos olhos. Quando o avistei no baixio do terreno, eclodiu um silêncio que vibrou por horas nas paredes do estômago. Disseram que não era época de chuva, mas choveu mesmo assim, nuvens contrariando homens. Tomamos um pequeno barco a motor e fomos olhar de perto as formações rochosas há milhões de anos fendidas em vermelho pelo rio e modeladas incansavelmente pela ação do sol e do vento.

Ao fim do dia, Marcos me levou à casa de Salete, de onde continuamos a ouvir o murmúrio das águas. À beira do Velho Chico, conversei por videoconferência com Iago Barreto, artista nascido em João Pessoa, que há tempos reside em Fortaleza. Ele tem vivido e produzido junto às comunidades indígenas cearenses. A partir de sua atuação como arte-educador em projetos com crianças, jovens, adultos e idosos de diversas etnias, e também de sua colaboração com o Museu Tremembé, Iago foi desenvolvendo algumas séries fotográficas nas quais intervém com o desenho, apontando para aquilo que não se pode ver no sentido mais estrito do verbo.

Ele me relatou vivências entre caciques, encantados, guardiões, seres do mangue, da duna e da mata, grupos indígenas dos litorais e outros grupos do sertão. Muitos de seus percursos se deram em zonas de conflito, nas quais foram travadas lutas por terra que significam, para Iago, “lutas pela sobrevivência de certos tipos de humanidade”. As experiências na companhia desses povos foram produzindo um campo sensível muito singular na relação de Iago com suas fotografias. Nelas, há predileção pela noite, não apenas a noite dos astros, mas também a noite do corpo, do espírito, da palavra, da percepção.

Iago contou quando o pequeno Átila Tremembé teimara em fotografar debaixo de chuva. Iago não entendia o motivo, até Átila explicar que eles estavam diante de Guajara, o protetor do mangue, e ele fumava naquele exato momento. Então Iago percebera a sutil coluna de fumaça subindo da terra. Em outra ocasião, acompanhara um projeto realizado por povos do sertão – das etnias Potiguara, Tabajara, Gavião e Tubiba-Tapuya – que têm estudado a implementação da língua Nheengatu novamente em seus territórios. Eles observaram pedras sobre as quais figuravam pinturas rupestres feitas há séculos por seus ancestrais. Queriam escutar as pedras e depois cantar para elas. Perguntavam uns aos outros como chegava às pedras o canto em Nheengatu, trezentos anos após o silenciamento da língua. Espantei-me por nunca ter pensado na perspectiva de uma pedra.

Encerramos a videoconferência e fui me deitar ao lado de Marcos. Na cama, conosco também deitaram a pedra pintada, os vapores do mangue, o conjunto de estrelas oscilantes na escuridão, as correntes fluviais que ainda hoje lambem com vigor os cânions às margens do rio. Desde aquela noite, não nos deitamos mais a sós.

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.