Bemdito

Cor-ação: eu amei uma mulher preta

Sobre como histórias de vida se encontram com o agir na vida coletiva
POR Carolina Mousquer Lima
Marie-Guillemine Benoist, Retrato de Madeleine

Dia desses me perguntei porque o tema da luta antirracista é algo tão importante na minha vida. A pergunta me acionou uma memória. Lembrei da Salete. 

Há temas que volta e meia retornam. Sem a gente procurar, eles nos encontram. Quando percebemos, já estamos enredados no assunto novamente. Tratando-se de temas politicamente corretos, poderíamos nos contentar com as respostas gerais e socialmente aceitas. Mas, para além dessas respostas, me parece interessante que a gente se pergunte: por que tal assunto é importante para mim? Em qual ponto da minha história de vida ele se engata? Saber em quais pontos subjetivos os assuntos nos dizem respeito, costuma evitar atrapalhações. 

Salete era uma mulher preta. Trabalhava como babá, cuidando de mim e do meu irmão quando éramos pequenos. Fui buscar informações sobre ela, mas sempre há poucos registros memoriais das pretas e pretos nas famílias brancas, mesmo que elas sejam “como se fosse da família”. Nesse dia lembrei do amor que eu sentia por ela. Bateu uma saudade imensa. Da Salete e também desse lugar infantil, o de ser cuidada. 

Um ponto da minha história que se conecta com a história do país. A babá preta da criança branca, desde os tempos da ama de leite: racismo estrutural. A mulher que sente saudade de ser cuidada porque esse lugar é culturalmente impedido a ela: machismo estrutural. Um não é sem o outro. Ou, como disse Vilma Piedade: “o Machismo é Racista”. 

Depois da Salete, tive a sorte de encontrar outras mulheres pretas pela vida. Digo sorte porque esses encontros foram potentes. Ampliaram nossos mundos.

Escutando algumas pacientes eu pude testemunhar os efeitos psíquicos,  políticos e sociais de uma política de cotas nas universidades. Pude também,  acredito, ajudá-las a sustentar que elas tinham direito de estar nesse lugar, se assim desejassem, ainda que o mundo branco universitário quase sempre as tentasse convencer do contrário. A escuta de uma paciente é sempre singular, mas nunca desvinculada do seu contexto social. E, entre elas, eu escutava esse comum. 

Com algumas amigas aprendo todos os dias que o feminismo só faz sentido se considerar a dor das mulheres pretas. Vilma Piedade traduziu isso em um conceito: dororidade. Segundo a autora, a sororidade não é suficiente para contemplar a pretitude. A dororidade vem, de forma complementar, traduzir a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele –  a dor constante que marca o cotidiano das mulheres pretas. 

Saber-se branca diante da dor das mulheres pretas, requer uma implicação que vá além da mera constatação. Se a cor da pele faz diferença – como branca vou ter mais oportunidades, sofrerei menos lutos e violências e viverei mais -, então é preciso que eu me implique eticamente com esse privilégio, que se produz à revelia de qualquer querer ou intenção de minha parte. No mundo das coisas, esse saber deve se traduzir, necessariamente, em ações. Eu chamo esse agir de Cor-Ação. O que eu devo fazer para que esse privilégio seja cada dia menor?

Essa é uma pergunta que tem muitas respostas. Mas são sempre respostas comprometidas com uma ação, que leva em conta a minha cor. 

Estamos no Julho das Pretas. Trata-se de uma ação de impacto político e propositivo pelo fortalecimento da participação das mulheres negras na sociedade. Celebra, também, o 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina Americana e Caribenha. 

E, por falar em calendário, outubro está logo ali. “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”, diz o fundamento da Coalizão Negra por Direitos. Apoiar as candidaturas de mulheres negras é uma das formas de dizer  em alto e bom som, como sugeriu Sueli Carneiro: pacto da branquitude? “não em meu nome!”.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.