Bemdito

Uma leitura de Furos no futuro

Resenha de um livro-água sobre a psicanálise, que encontra passagem em espaços mínimos
POR Carolina Mousquer Lima
Henri Cartier-Bresson

Uma lembrança 

Abro no índice e uma pergunta me esburaca: o que o poder não pode? Seguro o ar. Meu corpo se inclina para trás. Frase-tiro.

Imediatamente lembro de um episódio vivido na noite anterior, quando uma colega nos perguntava: o que eles podem fazer? Tenho essa sorte de estar bem acompanhada, de ter ao lado algumas colegas de serviço público que servem ao povo e não a uma ou outra pessoa que ocupa o lugar de poder na estrutura. São servidoras, mas recusando a servidão. E isso é tanto! Retomo o fôlego. 

Inicio por aí porque Furos no Futuro é um livro que convida a associações. Um livro que aciona memórias. Aciona sonhos. Aciona, especialmente, nosso desejo de saber. A experiência da psicanálise nos adverte: uma vida que acolhe o desejo de saber pode ser perigosa, trabalhosa e desconfortável, mas é a única opção que a faz interessante. Donaldo Schüler já nos diz isso no prefácio, de forma muito elegante. A vida desejosa é a antítese da felicidade paradisíaca.

O desejo de saber nos faz ter olhos de ver. E quando abrimos os olhos há muitas coisas difíceis de enxergar. A experiência de lucidez, quando não encontra reconhecimento em outros, pode ser enlouquecedora. Faz a gente pensar que está alucinando, “vendo coisas”. Portanto, encontrar companhia é um trabalho necessário, pelo qual  nos fazemos responsáveis por sair da tristeza inerte e passiva. 

O livro materializa esse trabalho de se fazer acompanhar. “Não há, portanto, revolta sem a alegria da invenção, sem o entusiasmo de compartilhar com o outro um sonho”(pg xx). Edson Sousa sempre soube se fazer acompanhar em suas andanças. Furos no Futuro é uma celebração de encontros alegres e potentes, que só a força da amizade é capaz de produzir. 

Além do prefácio de Donaldo Schüler, cada ensaio é aberto por uma imagem de artistas com os quais o autor vai abrindo caminho. Há também os capítulos escritos em parceria, com Elida Tessler e Manoel Ricardo de Lima. O  “O nome que falta”, escrito com o poeta, recomendo que seja lido em voz alta. O escrito toca os limites do sentido, nos convidando a suspender a compreensão e a nos deixar levar, navegar, pelo ritmo e pela sonoridade da escrita.

Penso que é uma grande gentileza de Edson nos deixar esse memorial de inspirações edsonianas. Poderemos sempre tê-lo ao alcance da mão. 

Furos no Futuro é livro-cura para a tristeza solitária.

Um sonho

Nesse dia o sono fora embalado por Furos no Futuro. Sonho com o mar. Há uma mulher naquele ponto do vai e vem. Inicialmente a sensação é de conforto. O sol aquece, a água do mar acolhe. No instante seguinte vem o medo do mar. Lembro que ele também pode ser fúria. Há no ar uma pergunta: por que ela está ali se tem medo? E em seguida o sonho responde: ela está ali porque precisa estar ali, porque quer vencer o medo.  Acordo e o próximo capítulo que encontro – ou que me encontra – é “Um mar que se desarma em letras: litoral, literal, lutoral”.  

A partir do livro de Mishima, Morte em pleno verão, o autor nos fala de 3 tempos do mar. O mar da esperança; o mar que nos puxa sem sabermos para onde, mar do trauma e do silêncio; e o mar que resgata a palavra, a transmissão, a responsabilidade do testemunho. 

Sair do conforto, se deixar arrastar pelo que não sabemos, enfrentando o medo, e resgatar a palavra, com força de testemunho e transmissão. Talvez Edson, como psicanalista, esteja nos apontando 3 possíveis tempos de uma análise. 

Conheço um menino de 6 anos, muito atento, que diz que o psicanalista é aquele que ajuda as pessoas a transformar pesadelos em sonhos. Às vezes as crianças são como os artistas, dizem antes e melhor que nós. 

Transformar pesadelos em sonhos só é possível se nos responsabilizarmos pelas nossas histórias – inclusive as que vieram antes de nós. Essa é a única forma de transformar o passado em uma herança, guiando nosso agir no agora e  nos possibilitando imaginar futuros que, como insiste Edson, não sejam mera repetição.

 Furos no Futuro é livro-água. Encontra passagens em espaços mínimos.

Um desejo

A psicanálise sempre apostou no valor dos mínimos.  Sabem essas cenas que imaginamos ao acaso, quando estamos caminhando na rua? Normalmente deixamos passar despercebida, como se não tivessem valor. Mas, às vezes, o tal desejo de saber insiste em decifrá-las. 

Um desses devaneios, que eu tinha tentado deixar de lado pensando que não teria como realizar nessa vida, retornou ao longo de toda leitura. (A neurose é muito engraçadinha. Ela tenta nos ludibriar fazendo de conta que nosso tempo é interminável ou que além “dessa” vida, haverá outra).

Uma cena que diz do meu desejo de desaforar, de desobedecer, de recusar, de fazer o novo. Do meu desejo de suspender o tempo do capital e do relógio. Encerro a leitura com um trabalho enorme pela frente. O que farei com essa cena que pede passagem? 

Portanto, não leia esse livro. A menos que você esteja disposto a se comprometer com a imaginação de novos futuros. Para você e para o mundo.

Serviço
Furos no futuro: Psicanálise e utopia
Edson Luiz André de Sousa
Editora: Artes & Ecos
2022

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.