Bemdito

Tudo em Todo lugar ao mesmo tempo

O que a obra dirigida por Dan Kwan e Daniel Scheinert ensina sobre as escolhas e os caminhos
POR Olivia B. de Avelar

Em uma das cenas ápice do filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”- em cartaz nos cinemas de todo Brasil – quando a personagem Evelyn Wang está prestes a acessar as habilidades e o conhecimento de todas as suas versões no multiverso, a ação desacelera, ela dobra seu corpo para frente e começa a vomitar. Somos, imediatamente, surpreendidos. 

Antes desse momento, acompanhamos a escalada da personagem para entender a ruptura dimensional que ela está vivendo, para dominar seu desejo de espiar e sentir, por mais tempo, a realidade onde ela é rica e famosa – e não só uma mulher exausta e frustrada que luta para manter em dia as contas de sua pequena lavanderia. Torcemos para que as habilidades marciais de outra versão sua – que é mestre em Kung Fu – sejam empregadas em sua jornada para salvar todas as dimensões. Por isso, quando a vemos vomitar na frente de sua poderosa antagonista, dobrar seu corpo frágil e combalido e desmaiar sobre o chão acreditamos, por alguns segundos, que esse é o final do filme. Mas não é.

Eu poderia começar a falar sobre essa obra dirigida Dan Kwan e Daniel Scheinert a partir de muitas cenas. “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” parece um caleidoscópio alucinado que gira e nos deslumbra de todas as possíveis maneiras e em todas as mais improváveis e inesperadas direções. Eu poderia citar a personagem Joy Wang, filha de Evelyn, vestida em uma espécie de cosplay de Elvis Presley enquanto guia um porco em uma coleira.

 Ou os policiais norte americanos que apanham de uma mulher lésbica e asiática que luta com dois pênis de borracha – um em cada mão. Ou sobre a rosquinha que contém todo o universo. Ou sobre a belíssima cena da Evelyn cantora – mais uma versão sua – em um teatro chinês. Como eu disse: um caleidoscópio. Frenético. Extraordinário. Enlouquecedor. 

Porém, a cena que mais me convenceu sobre a magnitude dessa história, do filme e da personagem Evelyn – mesmo que, para mim, isso se dê nela de forma subterrânea – foi a primeira imagem que evoquei ao iniciar esse texto: curvada, em um de seus momentos de maior potência, Evelyn vomita aos jatos e desmaia no chão. Foi esse momento que me lembrou uma passagem de outro filme que também considero brilhante e audacioso, à sua maneira e condizente com o tempo em que foi lançado: a cena do glutão em um restaurante em Monty Python – O sentido da vida. 

Em resumo, o glutão se senta à mesa de um fino restaurante francês e, incapaz de escolher, pede tudo. Todas as mais deliciosas entradas e todos os mais elaborados pratos principais. Bebe uma garrafa de cada vinho e de cada champanhe. Para terminar, ele também come uma fatia de todas as sobremesas e, depois de vomitar, explode. A cena de O sentido da vida é grotesca e termina assim, absurda e nauseante. Apesar de muitíssimo mais literal o que esse filme brilhante aborda se assemelha muito à contemporaneidade e a nossa obsessão crescente pelas possibilidades infinitas prometidas pela exploração do multiverso. Onde o personagem glutão do filme lançado em 1983 e nosso atual ressentimento e descontentamento com a vida real e cotidiana e a busca por infinitas possibilidades se aproximam é na incapacidade de escolher. 

A pretensão metafísica de sermos, vivermos e experimentarmos tudo. Atualmente, aprofunda-se a sensação de que, quando tomamos uma decisão – qual profissão seguir, com quem e se vamos nos casar, qual cidade viver e, até mesmo decisões mais simples, sobre qual filme vamos assistir, por exemplo – estamos, instantaneamente, “perdendo” todas as outras possibilidades. 

E, nesse início do século 21, o ser humano cada vez mais não suporta a ideia de que qualquer coisa passe despercebida, ou, não seja experimentada. Para mim, a cena em que assistimos a protagonista Evelyn quase sucumbir e por pouco também ter o mesmo fim do glutão que explode porque é incapaz de escolher foi o ponto de virada de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e seu primeiro aceno para genialidade dessa obra, que iria se cumprir elegante e lindamente ao final do filme. 

Enquanto avançamos para vivermos o futuro no próprio presente, cada vez mais somos compelidos a acreditar que nossas possibilidades podem ser abrangentes, totais, ilimitadas. “Você pode ser o que quiser”, “por que restringir e frear a vida com limites?”. Promessas de experiências sempre mais emocionantes em uma crescente de sensações empolgantes e de uma vida preenchida com tudo. A vontade infinita se esquecendo de que o conhecimento humano é limitado e nunca poderá abarcar tudo, em uma menção livre a René Descartes. 

E é exatamente e experiência e o conhecimento de tudo que atira a personagem Joy – filha de Evelyn e cuja reviravolta da personagem é tanto surpreendente quanto comovente e terna – em um abismo niilista e deprimente: uma vez que ela acessa e experimenta todas as suas versões no multiverso, percebe que nada faz sentido e que, portanto, a vida não tem sentido. É aqui que um filme de 2022 dá continuidade à cena do glutão que encontra seu fim nos mostrando a aniquilação do ser humano que não consegue escolher – e isso é feito, mais uma vez, da forma mais inesperada e encantadora que poderíamos assistir.

Sem me aprofundar nos caminhos da trama e em seus ótimos e muito acertados diálogos e soluções, na minha leitura de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, Evelyn poderia sim terminar como uma personagem que sucumbe ao vazio e à falta de sentido – sendo engolida pelo vórtice que transformou tudo em nada – ou explodindo ao acessar mais possibilidades e conhecimento do que sua composição humana é capaz de suportar. Porém, o que salva Evelyn não é o conhecimento acumulado de todas as suas versões no multiverso, mas sua limitada e humana capacidade de tomar uma decisão e de fazer uma escolha. 

O que nos salva a todos – humanos, cegos, incapazes de prever o que nos espera, que temos uma vontade infinita e que anseia por tudo, mas cujo conhecimento é limitado e que não nos permite saber o que será de nós após o virar de cada esquina e depois de cada pequeno passo que damos – é o ato de fazermos uma escolha e nos mantermos nela. Evelyn escolhe sua versão mais fracassada e se mantém na vida que considerava, no início dessa história, inútil, frustrada, triste e difícil. Uma decisão ilógica? Sim. 

Profundamente ilógica. Mas o que diferenciou Evelyn de sua contraparte niilista e aniquiladora não foi conhecer nem saber tudo – foi o afeto. Essa é a dissolução de um nó indissolúvel apresentada pelo filme: depois de sua jornada, Evelyn se mantém na vida que tem por uma escolha que nasceu do amor e não por acreditar que tinha sido atirada àquele lugar por sua fraqueza, por covardia, por erros do passado ou por obra do destino. 

A batalha final dessa absurda e comovente obra nada convencional ainda nos brinda com um detalhe que sintetiza e que dá o toque de mestre a toda cacofonia sinfônica e maravilhosa desse filme: quando Evelyn demonstra todo poder sobre si mesma que sua jornada existencial lhe deu ela coloca entre as sobrancelhas um adesivo de olho – o mesmo adesivo infantil e simpático que seu marido colocava em pares nas trouxas de roupas limpas para que elas parecessem mais felizes. 

Em uma clara menção ao terceiro olho – na tradição hinduísta, o terceiro olho está ligado à capacidade intuitiva e à percepção sutil e, quando bem desenvolvido, pode indicar um sensitivo de alto grau – para nos mostrar que Evelyn está desperta, pela primeira vez em sua vida. Para aqueles menos místicos e mais científicos, esse mesmíssimo lugar em nosso corpo também é onde se localiza a glândula pineal, responsável, entre outras funções, pela regulação dos ciclos vitais do nosso organismo e, também, chamada de “a morada da alma” pelo filósofo René Descartes. 

Estarmos conscientes. Acolhermos nossa vontade infinita e, humildemente, entendermos que não podemos saber tudo. Fazer de cada escolha um bom exercício da nossa liberdade. E, acima de tudo, nos movermos serenamente nessa terra cheia de possibilidades que nunca vamos experimentar. 

Saber que os incontáveis caminhos que nunca serão percorridos não são melhores do que aqueles que estamos traçando e que o fato de não caminharmos por eles não faz de nós perdedores, incapazes ou fracos, mas antes nos reitera a constância consoladora de que dentro de um ou muitos universos nos mantemos despertos, presentes e afetuosos no cuidado e na construção da vida cotidiana ao lado daqueles que amamos. Junto daqueles que fazem cada reafirmação das nossas escolhas fazerem todo e completo sentido.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.