Bemdito

Viajar sem sair do lugar

Da supressão dos deslocamentos durante a pandemia, sobrevive o desejo de viajar e descobrir novos espaços
POR Glória Diógenes
Detalhe de obra do pintor e desenhista Leonilson

Em coautoria com Irlys Barreira*

Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.
Guimarães Rosa

A pandemia varreu o planeta, isolou países, restringiu a circulação em áreas públicas, deixou desertos sítios emblemáticos do turismo, fixou viajantes em perímetros da vida cotidiana. Imagens da torre Eiffel, despovoada e silenciosa, cruzaram as redes digitais de todo o planeta. Escutamos relatos sobre aviões que trafegavam céus quase vazios. O trânsito aéreo diminuiu, o traçado de rotas e as torres de comando entraram em suspensão. Enquanto os aeroportos estampavam imagens desérticas, suas pistas e pátios aglomeravam aviões plantados ao chão.

Na rádio USP, a voz do professor Eli da Veiga, em novembro de 2020, disse que a pandemia foi uma boa oportunidade para que cientistas pudessem avaliar o comportamento dos pássaros em céus mais silenciosos e em ambientes mais despoluídos. Observou-se que, num período muito curto, os pássaros urbanos modificaram seus cantos, adaptando-os a um certo silêncio e aumentando seu grau de comunicabilidade. Isso aconteceu em pouquíssimo tempo, comenta o professor. Perplexos, os pássaros, voaram em céu aberto, sem os ruídos dos supersônicos. Viajaram mais, aprimoraram seus cantos, afinaram seus ritos de comunicação.

Lá embaixo, rés-do-chão, viajantes de todos os continentes, assentaram-se. Sem aviões, sem comboios, sem TGVs, navios, nem rodas, sem asas delta, nem paraquedas, outros circuitos foram sendo traçados. Sair do lugar exigiu ainda mais artesania da imaginação. Nas “palavras do pórtico”, Fernando Pessoa lembra a frase gloriosa de navegadores antigos “navegar é preciso; viver não é preciso”. Segue – “viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Tornar a vida grande, como disse o poeta lusitano, torná-la toda a humanidade. Sem bilhetes de passagem, suspensos os carimbos no passaporte, a voz de chamada é outra. Alô senhoras e senhores, todos os voos estão cancelados, desafivelem os cintos, guardem as malas e preparam-se para as turbulências.

As redes sociais digitais, especialmente o Instagram, às quintas-feiras, são inundadas pelos contumazes #tbts, abreviação de throwback thursday. Como se nas quintas houvesse uma possibilidade de regresso, ou revisita das experiências arquivadas nos álbuns da memória. Por vezes alguém arrisca, fora do dia da propalada hashtag, partilhar fotos de viagem. Outro internauta, comumente, indaga – viajou? Cria-se assim uma espécie de operação imaginária, seguimos viajando. Os lugares não param de acontecer. Turismos em versões do imaginário. Feliz daquele que arquivou suas imagens, que tem bom editor de fotos, que lembra do que viveu.

Vale ressaltar que nem todo viajante se movimenta, abre os olhos para cruzar limites de paisagens costumeiras. Vocês já presenciaram isso? Tem gente que enxerga seus conhecidos em todos os lugares, criando uma espécie de sensação correspondente. Certa ocasião, ao visitar uma catedral em Florença, uma de nós escutou uma mulher proferir a seguinte frase – é mesmo que tá vendo a igreja do meu lugar. Ao contrário disso, é possível viajar sem que se tire os pés do chão. O nômade, como dizem Deleuze e Guattari, não necessariamente é aquele que se move entre diferentes topografias. Ele se desloca mentalmente, atravessado por lugares do desejo.

Mais que se mover de um ponto ao outro, viajar traz ao corpo um mapa de sensações. Ver pela primeira vez, remexer lugares de si, despencar, subir, escalar em jornadas de aventuras, pisar em solos sagrados, percorrer caminhos de andarilhos sem destino. Famintos por novidades, experiências, alguns narradores marcados pelas vagarosidades, conseguem discernir a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas de cupins, diz Marco Polo à Kublai Khan no livro Cidades Invisíveis.

Viaja-se para contar, viaja-se para retornar. O narrador pinta com outros matizes quadros costumeiros. Viajantes e comerciantes, lembra Benjamim, figuras emblemáticas do deslocamento, costumavam partilhar grandes rodas, histórias de aventuras. Rememoradas, as narrativas de viagem refazem circuitos, dão cores e formas à vida comum. Reeditam biografias, possibilitam astúcias, imponderáveis de si. O narrador era conselheiro pois aprendia com a experiência.

Costuma-se ainda hoje dizer, fulano voltou de uma tal viagem renovado, “tomou um banho de cultura”, é outra pessoa. Habitualmente, até adjetiva-se o substantivo – beltrano é alguém viajado. Bom lembrar, viaja-se, também, para esquecer amores rompidos. Viaja-se para se recriar roteiros, repertórios e cenas de uma mesma vida.

Como as festas, as viagens permitem, ou se imagina que permitam, sobrepujar a “normalidade” da vida cotidiana. Ativam a vontade de transgredir, o esquecimento das horas, do calendário e dos ritos do “todo dia fazer tudo sempre igual”. Diante do cancelamento de voos, dos rígidos protocolos dos aeroportos entre ondas da pandemia, das inúmeras exigências para o atravessamento de fronteiras nós, persistentes narradoras, dizíamos uma para a outra – mulher, ainda bem que a gente escreve. Viajar é (im)preciso.

Ubiquidade – ato de estar ou existir concomitantemente em todos os lugares, pessoas, coisas. Essa faculdade de estar presente em toda parte fez aflorar escritos de viagens, pactuadas forças da liberdade. Ali onde a língua tenta escapar ao seu próprio poder, à sua própria servidão, como bem disse Barthes, transmuda-se a letra, os signos. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Confinamento, isolamento social pode ser usado, utilizado como uma verdadeira heteronímia das coisas. Traduzindo, de forma ligeira, a palavra heteronímia, pode-se nela dizer ser muitos, desdobrar-se, ou como se fala na linguagem popular – se fazer de doido para melhor passar. Atravessar os limites da pandemia da língua. Criar versões de si, múltiplos de uma mesma personalidade, como fez Pessoa para tentar escapar dos limites impostos pelo Fernando.

Por fim, deixar-se levar pelas palavras, percorrendo o solo branco da tela. Aprender com os pássaros. Inventar novos cantos e zonas de deslocamento. Contar histórias de viagens que não fizemos. Inventar até dizer basta. Eu fui, nós fomos aonde a flecha ligeira da vontade conduz.

Você duvida?

Escreveremos um cartão postal de destinatário desconhecido e endereço nunca encontrado. Você receberá e dirá – eu vi, elas viajam. Apenas sorriremos. Sorrateiras, no dorso de uma escrita sem chão.

*Irlys Barreira é professora aposentada titular de Sociologia e pesquisadora do CNPQ.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).