Bemdito

A estética da indiferença

A incapacidade de sofrer com a dor do outro e os primeiros passos rumo à barbárie
POR Glória Diógenes

É sim, a indiferença o sentimento mais atroz, corrosivo, letal. Penso que o primeiro alvo somos nós mesmos. Recordo quando criança, diante dos tantos conflitos entre irmãos, o momento em que um se levantava e de repente dizia – vou te matar. Então o pai, ou a mãe logo advertia – vá lá, dê um beijo e peça desculpas, você ama seu irmão. A tristeza era um sentimento banido das infâncias.  

Comumente, ficava reservada aos adultos. Você está triste? Fique não, tome um brinquedinho, vá se distrair. Por vezes, o discurso era construído com pitadas de sentimentos de culpa – triste!? Não tem razão de ficar triste, em sua casa não falta nada, você tem saúde, um pai, uma mãe que cuida de você. Isso é falta do que fazer. Aprende-se muito cedo a ir se distanciando de afetos que desconcertam, que revelam verso e reverso do que somos.

Para que a indiferença funcione bem, tenha eficácia, desenvolve-se variadas estratégias de gestão do corpo e das emoções. Andei pesquisando sobre os corpos de jovens lutadores de jiu jitsu, isso em 2003. Uma das coisas que mais me chamou atenção naquele momento, foi perceber que o “corpo dos fortões” não apenas desenvolvia técnicas de lutas, mas também se voltava para o controle das sensações de produção da adrenalina e da endorfina.

O excesso de adrenalina, por exemplo, poderia concorrer para uma derrota na luta. A baixa endorfina, sinal do ato exaustivo de lutar, “do cansar até não aguentar mais”, concederia um apaziguamento momentâneo. Na busca de um corpo obediente, controlado, o próprio corpo se deixa mutilar – orelhas deformadas, falanges de dedos alteradas em suas articulações, pernas e braços roxos de pancadas, cabeças raspadas para evitar o puxão do cabelo no momento da luta. Um embate que se trava, fundamentalmente, consigo mesmo.

O processo de um corpo que vai sendo disciplinado, calculado em cada gesto, no controle máximo de suas emoções, é complexo, leva tempo. A armadura é um artefato invisível que vai vestindo a pele. Sentir muito, “baixar a guarda”, permitir-se ser surpreendido por sensações que emanam afora às permitidas, é um tipo de fortaleza, possível apenas para os “fracos”, para os que sentem muito.  Clarice Lispector escreve, diante do assassinato de Mineirinho, com treze tiros (uma figura famosa por seus assaltos realizados em lojas comerciais à luz do dia, por atentados contra a polícia militar do Rio, e que após várias prisões teve sua lendária caça formada por mais de trezentos homens): 

Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Porque eu sou o outro, porque eu quero ser o outro. Essa é a força dos que transbordam. Por não terem corpos “blindados à visitação dos afetos”, como bem diz Juliano Pessanha na sua Província da Escritura, são visitados pela alegria e dor do mundo. Recentemente, dois episódios me fizeram parar e pensar na potência irruptiva da indiferença. Parece que quanto mais mortes, perdas, desalentos, projeções esvaziadas de esperança causadas pela pandemia, mais alguns se armam e criam ardilosas lógicas de guerra. No oposto, outros se fecham em casulos confortáveis.

No dia 20 de janeiro de 2022, René Robert, fotógrafo suíço, em meio ao drástico inverno de Paris, desmaia na rua. Fica lá estendido por volta de 9 horas. Pelo que se sabe, foi um morador de rua que chamou os bombeiros. Não deu tempo, Robert morreu de hipotermia. Em meio à gélida indiferença. Não era ninguém, apenas um velho deitado na rua. No Brasil, no dia 18 de janeiro, um homem de 25 anos, Moïse Kabagambe, negro, congôles, é espancado até a morte. Foram 29 pauladas, desferidas com taco de basebol. Enquanto isso, várias pessoas passeiam no calçadão, diante do quiosque na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, alheias à cena. Os vídeos mostram o quão era possível ver. A crueldade do Brasil colonial na casa grande da elite tropicália. 

Essa é a política da indiferença, termo usado pelo filósofo Jacques Rancière em relação à produção de obras de arte apartadas da energia da criação, mumificadas em museus, alinhadas a outras “artes da solidão”. Costuma-se ver o que está exposto, o que ganha a cena. Esquece-se do processo. Muita gente acredita, com todas suas forças, que o homem que governa o país é o mal nacional. Ele está “exposto”, é apenas “a obra”. A banalização de parte da população diante de visíveis atos de horror é um sinal do tanto que o “mal” se instala no lugar do suposto bem: na religião, nos grupos de defesa da pátria e dos bons costumes, nos tradicionais lares de família.

Uma matéria da Folha de São Paulo, “Veja o que se sabe sobre a morte do congôles”, informa que ele estava a perturbar clientes e a insistir em abrir o freezer da Tropicália para tomar cerveja de graça. Pronto. O crime está justificado para parte de uma população armada de ódio, que apenas enxerga o que quer ver.  

Sim. Vamos mudar o presidente. Faremos uma campanha cujo lema é a retomada das relações e das instituições democráticas, do direito à cidade, do respeito às diferenças. E depois? Como se reverte a intolerância, a crueldade de “quem veste prada”, a passividade e o adormecimento dos “bons” diante de ataques cotidianos às forças da vida? Enquanto uns cruzam os braços, tapam olhos e ouvidos, lustram a pele da indiferença, outros tentam saquear o que resta de dignidade e do direito à liberdade. 

Arriscando tangenciar o que seria um manual de autoajuda, a vontade que tenho é de fazer vibrar um manifesto – gente de todo o mundo, gente que sente muito, uni-vos! Dê colo para seu corpo cansado, acolha cordilheiras de revoltas, sobreviva ao engasgo das solidões. E não falemos mais para ninguém que parar de sofrer é a solução, porque lá fora quase tudo dói. Quando a vida ficar dura, dura demais, a ponto de a dor gritar mais alto que a coragem, algum unguento, remedinho, cai bem. No resto meu povo, é desassossegar os desassossegados, provocar os insurretos a irem levantando-se a cada suspiro do eu não aguento mais

E quando uma criança sentir muito, escute, seja algo bonito ou feio, escute. Inclusive aquela que permanece em você a tatear vestígios do que ainda é, do que ainda pode ser. Seria essa a forma possível de se evitar o risco de não sermos vítimas fatais de nossa própria indiferença? 

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).