Bemdito

Fome, indiferença e solidão: a experiência com coisas reais

O horror da fome escancarado nas ruas é um chamado para a ação e a mudança
POR Glória Diógenes
Cândido Portinari

Mas como podemos esperar salvar-nos naquilo que há de mais frágil?

(Montale, citado por Calvino nas “Seis Propostas para o próximo milênio”)

Não são letras fáceis. Em cada palavra arde uma lágrima. As entrelinhas acolhem uma espécie de engasgo, grito, espanto que fere e atordoa o olhar. 17 de outubro de 2021, domingo, século XXI.  Imagens de pessoas em busca de comida em caminhão de lixo viralizam nas redes sociais. O vídeo realizado por um motorista de aplicativo, mostra homens e mulheres catando alimentos descartados pelo comércio em um bairro nobre de Fortaleza.  Em setembro, fotos exibem a passagem de um caminhão no Rio de Janeiro que distribui restos de carne e ossos. Pessoas amotinam-se na esperança de um pedaço qualquer. Em Cuiabá, durante a pandemia, observou-se a formação de extensivas filas à espera de doação de restos de boi.

Em quase todos os semáforos das grandes cidades, gente faminta, sem teto, sem proteção do estado, sem direitos, sem palavra, sem visibilidade, exibe pequenos cartazes de pedido de socorro.  Profissionais, como foi o caso de um advogado morador de São Vicente, litoral de São Paulo, apelam para os que trafegam nas ruas – Peço uma oportunidade de emprego por favor. Nenhum vidro fumê, muro alto, paredes de indiferença conseguem ocultar a paisagem de crueldade que povoa as ruas. Os quase 15 milhões de desempregados no Brasil, somados aos que estão na linha da pobreza – 25% da população do país- apenas sobrevivem. Muitos outros, não. Geísa Sfanini, 32 anos, de Osasco, teve 90% do corpo queimado por usar álcool combustível para cozinhar em sua casa. De acordo com a vizinha, Geísa passava por dificuldades financeiras e estava sem dinheiro para comprar o gás de cozinha.

Recentemente, a CPI escutou vítimas e parentes da Covid de várias regiões do país. O gramado do Congresso nacional amanheceu com 600 lenços brancos, simbolizando os mais de 600 mil mortos pela pandemia no Brasil. O taxista Márcio Antônio Silva perdeu o filho de 25 anos. Sua fala ainda ecoa: 

“Três dias depois de enterrar meu filho – foi um sábado ou um domingo, eu não guardo a data porque não quero guardar essa data –, eu ouvi aquela fatídica frase: ‘E daí?’ Eu não sei, eu não posso. Eu não procurei ler, não procurei falar nada, mas, com toda a repercussão, eu escutei lá no meu coração: ‘E daí que seu filho morreu?’ Por que lutar contra a máscara? Por que lutar contra a vacina? Sabe, eu daria tudo para que meu filho tivesse tido essa chance. Ele não era um número. Ele era uma pessoa.”

O que falta acontecer? Recordo do impacto que experimentei ao ler pela primeira vez o livro “O horror econômico” de Viviane Forrester. Ela diz que não há pior angústia que a esperança. E não há pior horror que o fim de si próprio quando ocorre bem antes da morte e se deve arrastar enquanto vivo.  A indiferença, mais ainda que os números que mostram distribuição desigual de renda, é o sentimento mais feroz. Cada um a tentar viver como funâmbulo no tênue fio da luta diária pela vida. Tal qual o José de Drummond, muitos seguem, sozinhos no escuro, sem parede nua para se encostar, sem o escape de um cavalo preto que fuja à galope. 

Se aqui estivesse a escrever tendo entre os dedos uma caneta tinteiro, as palavras escorreriam manchadas de indignação e dor. Miro o espetáculo de perversão do desgoverno, a flecha das usuais frases de ironia e sarcasmo – e daí? – e fico a indagar onde se fixa o olhar de quem nada vê. Há ainda os que se regozijam com os efeitos da negação do direito à vida. Enxergar, aproximar-se da visão do horror, seria um modo de deslocar, de desmantelar a complexa “engenharia da indiferença” a qual se refere Safatle? 

Vida Nua,  tal qual define Giorgio Agamben, refere-se à experiência extrema da desproteção, o estado de ilegalidade de quem é comprimido num terreno vago, condenado a viver em um estado de exceção.  Olhe em sua volta. Mire às pessoas de olhos imprecisos, de corpos desabrigados, cujas bocas suprimem a voz dos sonhos e apenas anseiam a hora de ter o que comer. Bem perto de cada um de nós, vive alguém arrancado de uma vida digna.

Que país é esse? O conluio com a morte, o roubo literal de oxigênio dos que lutaram para respirar, a negação do uso de uma vacina que pode salvar, o achatamento das políticas de saúde pública e de educação vociferam em alto brado planos de des-existência, de genocídio dos indesejados: pobres, índios, negros, população de periferias, idosos, dos que contestam e se insurgem. 

Tal qual o mito da Medusa, como mirar a pavorosa paisagem de pavor, que se desenha diante dos nossos olhos, sem ser transformado em pedra? Observa-se nos relatos da mitologia grega, que a Medusa era trágica, solitária e incapaz de amar. Ela vivia junto à entrada do reino dos mortos, e ao seu redor jaziam diversas pedras de suas vítimas, homens e animais. E o mito, que não é mito nem nada, se repete. Resta saber onde está Perseu, o herói que decapitou a Medusa. De onde surgirá o cavalo voador, o tal de Pégaso? 

No curso de vias tão tumultuadas, diante do assombro de todos os dias, o convite é o de levante. Como disse Didi-Huberman, curador da exposição Levantes que ocorreu em 2018, em São Paulo, manifestar-se é um gesto. Pode ser um gesto de dança e pode ser um gesto de violência também, de revolta. Se está quase tudo perdido, se a imagem do país que somos, da democracia que celebramos, ruiu na trincada erosão do Brasil de Direitos, é entre escombros que tudo poderá se reerguer. Levantados, trêmulos rente ao abismo. Essa é a experiência que nos convoca. 

Já não é possível voltar ao atrás, à vida do jeito que se vestia diante dos nossos olhos. Fomos desterrados, arrancados de um tempo que já é outro. Então, se a experiência é algo, como diz Foucault, da qual saímos transformados, qual a minha, a sua transformação?  Diante da política de morte, dos movimentos que atingem a dimensão íntima dos afetos e sensibilidades, que centelha de vida tem sido possível instaurar? O levante é um gesto.

E se experimentar é abrir-se ao novo, traçar uma configuração de si ainda desconhecida, arrisco deixar entrar o que ainda não vi. Descalça. Tateando o disforme chão. Entre destroços e retalhos. Afinal ninguém está sozinho nessa solidão. Quando o corpo estiver cansado, faminto, fale com os amigos. A alucinação, como diz o poeta, do dia a dia não é nenhuma teoria, nem a fantasia, nem o algo mais, é elevar-se à altura do desconhecido. Transformar cada gesto de morte em vida que fala alto.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).