Bemdito

“Nem bala, nem fome e nem Covid”

Vidas negras importam, do Leblon ao Jacarezinho
POR Rodrigo Iacovini
Roberto Parizotti

Vidas negras importam, do Leblon ao Jacarezinho

Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br

Há três semanas, havia prometido que voltaria a abordar a relação entre violência e direito à cidade aqui no Bemdito. Não pretendia fazê-lo nesta semana, já estava inclusive pesquisando e estruturando um artigo sobre terras e outros recursos públicos para habitação. A realidade se impõe e o Brasil, mais uma vez, atropela nossos planos. Tenho que falar sobre o massacre que ocorreu no Jacarezinho, Rio de Janeiro (RJ), no dia 6 de maio. Afinal, é responsabilidade nossa, minha e sua, leitor e leitora, já que temos sido coniventes há séculos com o genocídio da população negra, corporificado pela ação policial em favelas pelo menos nas últimas cinco décadas.

De onde vocês nos leem, têm medo de serem alvejados na sua sala de estar? Pensam nos riscos quando veem sua filha brincando na varanda ou no quintal? Sabem dizer quais são os lugares mais seguros da sua casa em caso de tiroteio? Sabe qual a melhor posição para estar nesse caso?

Sei que a maioria de vocês não vive sob esse medo e sequer gastou algum segundo de sua vida pensando sobre essas questões, mas com certeza sabem que milhões de brasileiros vivem assim. Pessoas como Raull Santiago, morador do Complexo do Alemão, têm se dedicado há anos em nos informar disso, como fez em seu texto Na mira. No momento em que sabemos dessa realidade e não nos mobilizamos para transformá-la, não estaríamos sendo coniventes? Sim, estamos. E mais, a responsabilidade não é apenas pela omissão, mas também por atos que praticamos cotidianamente. Desde ações discriminatórias (conscientes ou inconscientes) até nosso comportamento eleitoral, estamos sustentando o sistema que promove esta e outras chacinas.

Não se trata de postar um quadrado negro ou uma hashtag na rede social. Apesar do importante apelo lançado por Daniela Mercury e Wagner Moura, também não basta cobrar as autoridades responsáveis pela apuração do que ocorreu. Precisamos rever nossas posturas cotidianas racistas que alimentam esse sistema. Devemos, no mínimo, não votar mais em candidatos cuja pauta para segurança pública seja enfocada no aumento do aparato policial ou no “maior protagonismo da guarda civil”, como aponta Dennis Pacheco em excelente artigo, que relaciona urbanismo e violência em São Paulo. No momento em que você apoia esse tipo de abordagem – e há pesquisas demonstrando a importância conferida pela classe média brasileira ao tema da segurança pública na hora de votar -, está sancionando esse massacre. Sua sensação de segurança não está acima da vida da população negra. O seu direito à cidade não vale mais do que o direito de moradores de favelas.

Mesmo estando inserido num histórico processo de violência contra essa população, o massacre no Jacarezinho se sobressaiu pela brutalidade, sendo considerada uma das ações mais violentas da polícia brasileira, o que tem levantado importantes questões sobre suas motivações. Estariam as forças políticas e sociais que dominam a ação violenta do estado enviando um recado ao STF, que buscou restringir a realização de operações policiais durante a pandemia? Estaria a ação da polícia abrindo caminho para milícias na sua disputa de poder com o Comando Vermelho?

Todas as hipóteses levantadas são válidas, até mesmo a de desviar o foco das discussões promovidas pela CPI da Covid, que ameaça grupos políticos conectados com milicianos e integrantes das forças policiais. Seja qual for a hipótese correta, a população negra e favelada novamente é quem sofre o ônus das disputas políticas e sociais brasileiras.

Por isso, a Coalizão Negra por Direitos convocou manifestações nacionais para a próxima quinta-feira, 13. “No próximo dia 13 de maio, marco histórica da abolição formal da escravidão no Brasil, convocamos manifestações em todo o país pelo fim do genocídio negro, das operações policiais assassinas, das chacinas de todo dia. Nem bala, nem fome e nem Covid. Queremos viver! Precisamos dar um basta ao genocídio negro. A população negra e favelada também é digna de direitos humanos. Não esqueceremos a Chacina do Jacarezinho. Vidas Negras Importam.”

No dia 13, ecoemos com a população negra “Nem bala, nem fome e nem Covid!”.

Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.