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Fortaleza revela para o Brasil: epidemia de despejos piora em 2021

Número alarmante de famílias despejadas em 2021 é o retrato de um país abandonado à própria sorte
POR Rodrigo Iacovini

Os efeitos da crise econômica, política e social brasileira foram majorados pela pandemia do coronavírus, sendo o aumento expressivo do número de famílias despejadas um dos seus maiores impactos. Entre os dias 17 e 19 de novembro, Fortaleza foi visitada por uma comitiva de organizações acadêmicas e da sociedade civil organizada brasileira para verificar in loco as condições de famílias já removidas ou ainda sob ameaça de despejo na cidade. O resultado é estarrecedor: são 4.685 famílias despejadas, removidas ou ameaçadas apenas em 2021 no estado do Ceará.

Os dados são da Campanha Despejo Zero, iniciativa de centenas de organizações sociais que desde o início da pandemia tem se mobilizado para monitorar e denunciar a epidemia de despejos vivida no país, cujos impactos estão diretamente vinculados com a (im)possibilidade de isolamento social necessário à saúde pública da população brasileira. Em todo território nacional, são mais de 123.153 mil famílias ameaçadas de despejo, ainda segundo dados da campanha, o que equivale a aproximadamente 492.612 pessoas vivendo sob constante risco de perderem suas casas.

A exemplo de como são realizadas as missões a países por Relatores da ONU para o Direito à Moradia Adequada, a visita a Fortaleza foi organizada em conjunto pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana, pela Campanha Despejo Zero e por organizações e coletivos locais. Além do envolvimento de mandatos parlamentares historicamente comprometidos com a defesa da moradia, como o deputado estadual Renato Roseno e da mandata coletiva Nossa Cara; esteve ativamente envolvida uma gama de atores sociais que trabalham no tema, do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB) da UFC ao Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), ligado à Assembleia Legislativa e que há 21 anos acompanha centenas de comunidades ameaçadas de despejo.

As situações relatadas à comitiva nacional pelas famílias e comunidades visitadas – Ocupação Dragão do Mar, Alto das Dunas, Raízes da Praia, Titanzinho, Vila Vicentina e comunidades atingidas pelo VLT – representam graves violações ao direito à moradia adequada de acordo com o direito internacional. Por força do parágrafo 2º do Art. 5º de nossa Constituição Federal, os tratados internacionais ratificados pelo Brasil integram a ordem jurídica nacional. 

Previsto no Art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) –  “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida” -, a efetivação do direito à moradia pressupõe o atendimento integral das suas sete dimensões, conforme interpretação do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU em seu Comentário Geral Nº 4: segurança da posse; disponibilidade de equipamentos, serviços e infraestrutura; custo acessível; habitabilidade; acessibilidade a grupos vulneráveis; e adequação cultural.

Mais especificamente no tocante à segurança da posse, o Comitê determina ainda que, mesmo em casos de ocupação de terras e edifícios, independentemente do título de propriedade ou do status da posse, deve-se garantir que seus moradores sejam protegidos contra remoções forçadas, já que estas constituem uma violação prima facie de direitos humanos. Ou seja, não apenas o Estado Brasileiro falha ao deixar de proteger a segurança da posse de seus cidadãos, como também é um dos maiores violadores do direito à moradia, na medida em que o Sistema Judiciário é, por exemplo, o principal responsável pelas ameaças sofridas por famílias fortalezenses, segundo dados apresentados na Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa ao fim da visita, na última sexta-feira.

Não bastasse deixar de proteger e até mesmo violar esse direito, o Estado ainda persegue e criminaliza seus defensores. Além dos relatos revoltantes de despejos violentos em comunidades envolvendo mulheres grávidas, idosos, bebês com menos de um ano de idade, crianças dentro do espectro autista e até pessoas em luta contra o câncer; apenas em 2021 dez pessoas foram detidas em Fortaleza durante ações de despejo, sendo que seis delas continuam sendo criminalmente processadas. Se vivemos atualmente sob o governo do pior presidente da república – pelo menos desde a redemocratização -, há muitas outras esferas do Estado brasileiro que são também co-responsáveis pela atual situação calamitosa.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.