Bemdito

O futuro de Fortaleza está no Edifício São Pedro

E se, em vez de ser demolido, o prédio se tornasse um museu sobre a história da orla da cidade?
POR Rodrigo Iacovini
Foto: MPCE

Se por um lado somos uma sociedade que promove e valoriza os espaços que segregam, como os shopping centers – como abordei na última semana -, por outro, temos dificuldade em preservar o patrimônio de interesse da coletividade. Nas últimas semanas, o futuro do edifício São Pedro, em Fortaleza, foi alvo de decisões que colocam em xeque parte importante da memória da cidade, tendo em vista o cancelamento do seu tombamento provisório pela Prefeitura de Fortaleza, através do Decreto Municipal nº 15.096/2021.

Embora seja importante a adoção de critérios e estudos técnicos para embasar as decisões sobre tombamento ou não de bens, como alega a Prefeitura no Decreto, trata-se sempre, em última instância, de uma decisão política. A própria alegação de que o tombamento seria economicamente inviável, por exemplo, possui uma dimensão mais política do que técnica. Afinal, quantos milhões de reais foram já gastos, por exemplo, pelo governo estadual no famigerado Acquario, que hoje está completamente parado? Respondo: segundo informações do site do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, já foram pagos mais de R$ 100 milhões no âmbito dos contratos para sua construção.

É verdade que a decisão do cancelamento do tombamento foi da Prefeitura, enquanto o investimento no Acquario é do Governo do Estado. Mas não teria sido mais interessante uma parceria entre ambos, para a conservação do edifício e – sei lá, só jogando uma ideia aqui para vocês, como todo bom colunista pitaqueiro – a instalação de um museu sobre a ocupação da orla de Fortaleza?

Tendo em vista que foi o primeiro edifício construído na região, o São Pedro seria o lugar perfeito para abrigar um espaço educacional e de memória em que fossem registrados as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e urbanísticas que levaram ao desenvolvimento da região da orla e da cidade como um todo. Inúmeras gerações poderiam aprender com profundidade e de forma lúdica os conflitos vividos na disputa pelo espaço urbano, ainda mais quando este possui características de difícil reprodução (como praias, paisagens, etc.).

Para aqueles que visavam a incrementar a receita do turismo da cidade com o Acquario, um museu como esse poderia despertar ainda mais o interesse de visitantes. Se há muitos, maiores e, provavelmente, melhores aquários ao redor do mundo, não se pode dizer o mesmo a respeito de espaços que contem a história da ocupação da orla de Fortaleza. Ou de diversas outras orlas, para falar a verdade. O espaço poderia explorar a evolução da relação da sociedade com o mar e a praia de modo geral, desde a dimensão econômica (de comunidades tradicionais pesqueiras) até a social (abordando questões de ocupação pela moradia, lazer, entre outros). Uma museologia arrojada e inovadora tornaria essa história um sucesso de bilheteria, vide o exemplo do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, cujo objeto é algo que, em tese, não despertaria o interesse da população em geral, mas cuja museologia transformou a experiência em algo único e muito atrativo.

A respeito da inviabilidade técnica do ponto de vista estrutural, gostaria de comparar com as questões que há décadas vêm sendo levantadas por urbanistas, engenheiros, ambientalistas e outros profissionais acerca da construção social do risco no caso de ocupações urbanas em áreas ambientalmente frágeis, como margem de rios e córregos, encostas, entre outras. 

Embora muitos laudos queiram conferir um ar puramente técnico a recomendações para remoção de moradias situadas nessas áreas, já dispomos hoje de conhecimento e metodologias suficientes para adequar sua situação e, dessa forma, possibilitar a permanência das famílias que aí construíram suas vidas, redes de sociabilidade, dinâmicas produtivas.

Assim como existem formas de consolidação dessas unidades residenciais, quero acreditar que o avanço tecnológico da engenharia brasileira já é suficiente para que seja possível também consolidar o edifício São Pedro. A questão, portanto, retorna à esfera econômica e, portanto, política da decisão.

No caso de moradias em áreas de vulnerabilidade ambiental, ao alegar que a adaptação dessas moradias seria economicamente inviável ou muito onerosa aos cofres públicos, o poder público esconde que são as famílias removidas que acabam arcando com o ônus econômico da remoção.

Neste processo, acaba recaindo sobre elas o ônus de encontrar um novo lugar para residir, edificar uma nova moradia, etc. Mesmo em casos em que são oferecidas a elas alternativas (como unidades em conjuntos habitacionais ou indenizações), essas famílias acabam frequentemente perdendo fontes de renda provenientes de serviços e comércios prestados na vizinhança – e até mesmo a sua rede de suporte, parte importantíssima da economia do cuidado.

Demolição apaga memórias

No caso de uma eventual demolição do São Pedro, também há ônus invisíveis que serão arcados pela sociedade fortalezense, a qual perde parte importante de sua memória e de sua história. Primeiramente, o edifício, seus proprietários e moradores se beneficiaram, durante mais de meio século, da infraestrutura urbana que o circunda e é financeiramente viabilizada pela coletividade. Há, portanto, um investimento da sociedade considerável ali que precisa ser contabilizado em uma análise econômica.

Além disso, a sociedade perde a oportunidade de manter vivo um marco da dinâmica urbanística da cidade. Se não fosse por ele, quando saberíamos que, até sua construção na década de 1950, a região ainda não havia se verticalizado?

A presença de um edifício histórico impacta muito além de seus metros quadrados e cúbicos de área e de concreto, ela assegura a possibilidade de reflexão crítica sobre o passado e, igualmente, sobre os futuros rumos da cidade. Despojados da possibilidade de crítica e reflexão, quantas decisões erradas tomaremos no futuro? Quais os custos desses erros? A história tem um valor econômico imprescindível.

E para aqueles que argumentarem que os profissionais dedicados aos temas, como historiadores e urbanistas, continuarão a dispor desse conhecimento mesmo em caso de demolição do edifício, gostaria de relembrar: a cidade não é construída apenas pelo saber técnico.

Uma cidade é decidida pela sociedade, tanto no seu cotidiano, quanto nos processos participativos institucionalizados, como o exercício do direito político ao voto e à sustentação ou oposição às gestões municipais eleitas. O conhecimento que o Edifício São Pedro guarda sobre a história de Fortaleza é essencial para que todos seus habitantes possam participar efetivamente da construção dos rumos da cidade, não devendo ficar restrito a uns poucos historiadores, urbanistas e geógrafos.
O que se vê em Fortaleza é, infelizmente, uma situação comum a várias outras cidades do país: a preservação do patrimônio – histórico, cultural, arquitetônico – não é prioridade na agenda pública, principalmente quando se encontra no caminho da indústria do desenvolvimento imobiliário e da construção civil.

O caso, contudo, está longe de chegar ao seu desfecho final, já que o Ministério Público do Estado do Ceará ajuizou Ação Civil Pública com pedido de liminar, na última quarta-feira (25/08), solicitando que sejam suspensos os efeitos do Decreto Municipal nº 15.096/2021 e que seja declarada sua inconstitucionalidade incidental, de maneira a que o imóvel seja tombado provisoriamente. Fiquemos atentos às cenas dos próximos capítulos, pois o futuro da cidade está em jogo.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.