Bemdito

Memórias de um navio fantasma

O Edifício São Pedro conta, em primeira pessoa, parte de sua história
POR Leonardo Araújo
Foto: Marília Oliveira

Certa noite, escutei este fragor e deu-me a sensação de que deste mundo marinho, latente, faço parte.
A Casa (Natércia Campos, 2004, p. 12)

Fui erguido com esmero, assim me contaram os ventos. Fiéis frequentadores continuam a rodopiar dentro de mim, fazendo festa nos vãos e salões de meu interior fragmentado. O ano já vai longe no tempo das pessoas. 1951. Época em que o mundo lutava para se reerguer, após um conflito que transformou a vastidão da terra em campo de batalhas, sangue e escombros.

Como toda história é privilégio de quem a conta, o resultado da disputa selou o destino das linhas, dos contornos e das formas que me constituem, inspirado na arquitetura de prédios situados em paragens longínquas, aonde nem mesmo a brisa podia chegar. Assim diziam aqueles que andavam por meus corredores, quartos e saguões, enleados à fantasia de flanar por Miami, gozando da riqueza e do luxo que parecia existir além da Linha do Equador.  

De primeiro, fui batizado com o nome Iracema Plaza Hotel e anunciado por meu idealizador, homem rico e supersticioso, como o mais moderno e luxuoso hotel de Fortaleza, apesar de nunca ter chegado a assumir a forma apresentada no projeto inicial. Entre funcionários e hóspedes corria o boato de que o motivo fora um sonho anunciando que a conclusão das obras representaria a morte de meu dono. Isso não impediu, no entanto, que em minhas dependências se abrigassem pessoas ilustres, desde apresentadoras de televisão, até políticos, artistas, intelectuais e empresários.

Toda essa gente era servida por pessoas pobres, da pele curtida pelo sol, partilhando da linhagem dos primeiros habitantes deste chão. Vinham do interior, das praias e dos sertões áridos em busca de uma vida mais próspera. Muitos eram tão jovens que viveram as primeiras paixões aninhados nas reentrâncias que compunham minha estrutura, em beijos clandestinos trocados sofregamente, antes que dessem por sua falta. Em outros momentos, esses mesmos esconderijos eram utilizados para fugirem da fiscalização das autoridades que buscavam coibir a prática do trabalho infantil.

No final dos anos 70, mais de vinte anos após minha inauguração, ganhei um novo nome, Edifício São Pedro, e uma nova função: de hotel, passei a prédio residencial, recebendo pessoas interessadas não mais em permanecer temporadas ou pequenos intervalos de tempo, mas em entrelaçar suas existências à minha, numa partilha que mais parecia um exercício de incorporação.

Daqueles com quem dividi muitos anos, era capaz de reconhecer o som dos passos, a maneira como batiam a porta ao sair, o cheiro da respiração que deixava seus pulmões à noite.

Sobre isso, há uma memória particularmente reveladora. Em 1966, um famoso cronista foi convidado a fazer morada em mim, tendo permanecido por mais de duas décadas. Certo dia, um noivo acompanhado de três capangas armados com pistolas invadiu o apartamento do jornalista, em busca de vingança pelas palavras que este lhe dirigira antes do casamento.

Percebendo a emboscada que se formava, o cronista saltou de seu andar, na tentativa de evitar o tiro fatal, e só não morreu porque foi amparado por mim, ao cair em uma plataforma usada para estender roupa, localizada no quinto andar.

A mesma sorte não encontrou a artista que resolveu conferir outras marcas às paredes que um dia receberam cores tão alvissareiras quanto as que gostava de usar. Ao se apoiar em uma estrutura de madeira para alcançar um lugar mais alto, o material cedeu ante o peso de seu corpo.

O abandono a que fui submetido ao longo dos anos deixou cicatrizes e marcas profundas, o que abriu espaço para a circulação de forças que eu já não era capaz de conter ou direcionar. Assisti à morte da garota, inerte, como se seu destino e o meu se cruzassem em algum ponto impossível de enxergar.

Das estruturas pensadas para preservar os que por mim circulavam, quase nada mais resta. Foram-se corrimões, guarda-corpos e janelas. Foram-se portas e degraus, e dos elevadores sobraram apenas os locais por onde costumavam subir e descer, transformados agora em alçapões abissais, tão fundos que engoliam a própria luz. Há marcas de incêndio por toda parte e, no chão, azulejos, caibros e pedaços de forro se espalham como areia, chegando a formar montes que lembram pequenas dunas.

À medida que minha estrutura se deteriorava e os perigos em permanecer aqui dentro aumentavam, os moradores foram rareando, para dar lugar a outras formas de vida. Insetos, gatos, ratos, morcegos e outros animais voadores vinham procurar abrigo, o que me rendeu nomeação bem menos pomposa que a dos primeiros tempos: Gaiola dos Pombos. À merda dos bichos se misturava a da gente que ainda andava por aqui, fosse para se proteger do frio ou da chuva, ou para fumar crack longe da vista dos policiais, circulando eternamente nas viaturas que espelhavam a luz da lua.

Recentemente, comecei a receber grupos de pessoas com câmeras nas mãos, ávidos por fabricar memórias com os objetos que aqui permanecem. Seus lamentos ecoam a notícia de que serei demolido em breve.

Junto aos escombros e aos cacos de vidro, causando pequenas explosões quando pisados e arrancando sangue dos incautos, é possível encontrar fichas de antigos funcionários, pequenos manuais de operação de máquinas de algodão, papéis burocráticos, peças de roupa, discos e álbuns de fotos.

Hoje não passam de restos que só interessam a quem vive de narrar a existência – a própria e a dos outros -, dando conta de tudo que se vai, de tudo que se perde, da deterioração das coisas e da dilacerante saudade de quando a vida era potência, não a materialização de uma esperança jamais realizada.

Afora o destino reservado a mim, do futuro sei pouco. Tudo que me chega agora vem pelas vozes dos que arriscam a própria pele para um último adeus, anunciando um mundo que já não reconheço.

Fui construído para causar nos hóspedes a impressão de um navio para sempre ancorado, cercado por águas verdes a perder de vista. Da janela do salão principal, onde muitos réveillons foram passados e tantas outras festas de que os mais velhos guardam notícia, é possível ver o Mara Hope ao longe, ferruginoso e solitário.

Atingidos pelo mesmo sal e pela mesma maresia que há décadas nos comem os ossos, acompanhamos nossa degradação mútua, lenta e agonizante. Não trocamos palavras. Elas são desnecessárias entre nós, secundadas pela sorte que nos une. Caindo aos pedaços, somos dois navios fantasmas, signos de uma cidade invisível.  

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.