Bemdito

Memórias de sereias

Sobre a beleza incompreendida, capaz de tocar fogo, mesmo que submersa
POR Raisa Christina
The Sea Maidens (Evelyin De Morgan)

Sobre a beleza incompreendida, capaz de tocar fogo, mesmo que submersa

Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com

Quais as suas lembranças mais remotas de banho em águas doces? Em que ambiente e ao lado de quem você aprendeu a nadar? Essas são perguntas que costumo fazer àqueles de quem quero me aproximar verdadeiramente. Sinto que conheço melhor alguém quando ouço as suas autonarrativas.

Aprendi a nadar no açude Mandacaru, num lugarejo quase perdido entre o município de Mombaça e o distrito de Mineirolândia. Flutuávamos meus irmãos e eu sobre câmaras de ar nas quais podíamos deitar inteirinhos, compactos que éramos: peito, braços e pernas abertos para o sol; pés, mãos e bunda resfriados no toque com as águas barrentas.

Era preciso saber por onde adentrar o açude. Havia épocas em que a entrada principal era tomada por aguapés e lama escura. Preferíamos as porções em que se podia enxergar os pés no fundo de areia clara junto às piabas que vinham mordiscar as feridas frescas de nossos joelhos.

Eu sonhava em ser uma pequena sereia, mas ainda me faltava paixão. Amarravam-se duas cabaças por uma corda sobre a qual apoiávamos a barriga ou os sovacos e assim íamos deslizando destemidos sem afundar. Vez por outra, surgia um jumento levado por algum menino que descia pela outra margem para buscar água.

Nunca esqueci o homem magro e a sobrinha que lhe acompanhava, ambos de cabeças vermelhas e peles respingadas de sinais marrons. Eles apareciam agindo como os demais, no entanto, compunham com a paisagem acordes dissonantes. A terra de tons alaranjados se elevava em torno deles e do açude, no encalço das grotas por onde se podia farejar tímidos riachos e pedregulhos. Enquanto eu procurava um ângulo para sair do contraluz e avistá-los melhor, os outros moradores da região, por entre risinhos, referiam-se a eles como enferrujados, descascados, sararás, pinga-fogos.

A menina tinha uma cabeleira cacheada que se armava além dos ombros e resplandecia. Hoje não consigo recuperar sua voz nem seus gestos, apenas a impressão forte que sua silhueta me causava à beira do açude. Não a vi entrar na água nenhuma vez. Lembro que era comprida como o tio e dele parecia herdar o ruivo e a estampa miúda que lhe cobria todo o corpo. Eu, que era aficionada por sereias, com o entusiasmo que só ocorre àquela altura da vida, talvez tenha encontrado nela alguma semelhança sutil com as tais mulheres mitológicas.

Penso agora naquela família de gente ruiva, nascida e criada num recôndito do sertão cearense, no contraste com peles tão mais resistentes ao sol. Acho bonita a diversidade incrustada no seio do nosso povo, contudo, não posso afastar a lembrança de certo desprezo presente na fala dos moradores locais. Aquele sentimento que eu captava de viés se opunha ao meu encanto. Diante da menina e de seu tio, não compreendia por que o vermelho exuberante das madeixas, assim como as manchas multiplicadas desde a testa até as extremidades, podiam ser motivo de gozação e não de charme.

Tanto tempo depois, se me acontece de cruzar com um raro passante ruivo pelas ruas, ainda abro os lábios tentando sorver o ar que vai embora rapidamente e sou tomada pelo mesmo enlevo que vem misturado ao cheiro do açude, ao risco das primeiras travessias a nado.

É curioso perceber o modo único pelo qual cada memória articula eventos, impulsiona acervos imaginários e mobiliza sensações. Aprender a nadar para mim é a experiência de se deixar engolfar pelo outro, algo próximo do contato com a beleza incompreendida, com a beleza capaz de tocar fogo, mesmo que submersa.

Raisa Christina é artista visual e escritora. Está no Instagram.

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.