Bemdito

Vovó partiu aos 103

Como o adeus à minha última avó viva despertou uma melancólica reflexão sobre a velhice do homem gay
POR Caio Faheina

Como o adeus à minha última avó viva despertou uma melancólica reflexão sobre a velhice do homem gay

Caio Faheina
caiofaheinapress@gmail.com

Julieta, até então minha última avó viva, partiu nessa terça-feira, 11 de maio, aos 103 anos. E com esse adeus, um tanto de alívio. Alzheimer, disfagia e outras doenças habitavam seu corpo. Já não lembrava quem era, tampouco sabia dos 16 filhos e dos mais de 40 netos. A memória, que um dia fora tão boa quanto a escrita de suas trovas e poemas, virou borrão. Vovó se foi criança.

Nesta quarta, 12, amanheci com um desejo de tomar um banho de mar. Por ela e por mim. Boiar na Praia de Iracema e resgatar lembranças bonitas de quando comia seus doces de caju, os melhores, ou quando me pendurava no pé de siriguela atrás das frutas “de vez”. Porém, sempre que penso na “vovó do boi”, como eu a chamava na infância por ter criação de gado no seu terreno, em Pacajus, a mente se ocupa com pensamentos que sempre voltam quando estou desavisado: como será a minha velhice?

Um homem gay, sem filhos nem pretensões de tê-los, sem irmãos (com quem possa contar, pelo menos). O que será da minha velhice, caso eu tenha o privilégio de chegar até ela? E se eu não ficar são? Certa vez, li uma matéria escrita pela jornalista Bianca Soares, com o título Solidão afeta idosos LGBTs. Logo abaixo, havia: “Primeira geração de homossexuais que viveu abertamente sua sexualidade chega à velhice e ao isolamento”.

O material tinha depoimentos de Angela Ro Ro e João Silvério Trevisan, por exemplo, além do publicitário Osmar Resende, que alertou sobre a solidão impor a “volta para o armário” para garantir a sobrevivência de alguns pares.

Pensar sobre a velhice, a minha velhice, acompanha a minha juventude diariamente. Claro que aqui há muito do estigma construído socialmente sobre o envelhecer. Quero desviar deste caminho e da rota para o armário no qual um dia me impuseram. Para lá, jamais voltarei.

O caminhar, espero, será em meio às flores, rosas e aos jardins sobre os quais vovó sempre escreveu. Eu quero viver como ela. Afinal, quem atravessou 103 anos sabe viver.

Caio Faheina é jornalista e editor de conteúdo da Secretaria da Saúde do Ceará.