Bemdito

Dedos de metal

Os choques de um corpo pronto a absorver a alta voltagem do mundo
POR Rhaina Ellery

Vivo como se tivesse um dedo de metal e, involuntariamente, o enfiasse na tomada.

Não controlo meus pelos e, de uma hora para outra, os pequenos fiapos podem se erguer tal qual o famoso pé de feijão. Tudo pode ser gatilho para o arrepio: Meryl Streep gritando em Escolha de Sofia; Dave Grohl ecoando como um gol dentro do Morumbi; minha filha dizendo que sente saudades do avô que não conheceu; o cheiro da baba de moça na garfada do pão de ló. 

Os choques estão cada vez mais frequentes. Às vezes, meu corpo absorve a alta voltagem e deságua em pequenas lágrimas. Às vezes. 

Semana passada, recebi um presente via correspondência: você precisa ler isso, comece pelo conto Nada disso tudo. Um beijo. 

O remetente sabe do meu espanto pela literatura. Algumas histórias me assombram tanto que passo dias em estado de alerta, como se algum plano de fuga precisasse ser acionado ao toque de uma sirene que só eu pudesse escutar. Fico louca por dias, ainda mais.

Abro o texto e sigo as instruções.
Antes que sua filha de cinco anos 
se perdesse entre a copa e a cozinha, 
ele a avisou: “Esta casa não é grande nem pequena,
 mas ao menor descuido os sinais do caminho se apagarão,
 e desta vida até o fim, você terá perdido toda a esperança”.

                             Juan Luis Martínez, A desaparição de uma família

A epígrafe do livro já me faz olhar para trás e pensar que estou sendo seguida. Continuo meu percurso pelo trem fantasma. Começo a ler o conto de Samanta Schweblin e sei do que ela é capaz. Kentukis, o primeiro livro dela que li, foi indigesto (e saboroso) como um alho, poderia matar uns cinquenta vampiros.

Nada disso tudo é um grito que ecoa para dentro. 

Uma mãe dirige seu carro com a filha no banco do carona. “Estamos perdidas” é a frase que abre a cortina e que te carrega pelas treze páginas seguintes. 

Na infância, fui convidada para uma festinha, a primeira na nova cidade. Mamãe não dirigia há anos. Decidiu, sem explicações, parar de conduzir. Sei chegar lá, ela disse após levantar o rosto da lista telefônica. Uma tia, que nos visitava, aceitou ser motorista e seguimos para o endereço indicado no convite. É longe, elas disseram várias vezes diminuindo mais e mais a velocidade do carro.

Só depois das casas começarem a se repetir, assim como árvores e esquinas, mamãe verbalizou o categórico estamos perdidas. As duas tentavam prender o riso constrangido enquanto consolavam meu choro. Ao entender que minha mãe não sabia o caminho, deixei que a raiva invadisse meus dez anos de idade e espumei palavras que prefiro não materializar aqui, até porque não lembro delas e minha imaginação pode ser bem cruel.

Sigo pelas últimas páginas do conto e salivo o agridoce das semelhanças entre mim e as personagens. Ora sou a mãe, muitas vezes sou a filha. Samanta Schweblin deveria ter piedade de mim, pois me atira sozinha na lona vazia do final da leitura.  Será que minhas filhas já sabem que eu sequer tenho mapa? Tento esconder o tremor elétrico do meu arrepio, mas, quando aparece, ele veste paetês dourados e não consigo devolvê-lo ao cativeiro do inconsciente.

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.