Bemdito

WhatsApperização da vida

Ou como transformar limão em limonada
POR Glória Diógenes
Ilustração: Nastya Ptichek (da pintura Summer Evening, Edward Hopper)

Recentemente, uma pessoa querida telefonou e disse: “decidi voltar a ligar para os amigos”.  Conversamos horas a fio. Fui então me dar conta de como, fora os mais próximos, não fazemos ligação que não tenha sido pré-agendada. Sem contar que alguns perfis do WhatsApp já exibem em suas páginas de abertura o aviso: odeio áudios. A ligação, sem aviso prévio, tornou-se uma espécie de invasão da privacidade. A voz, seus ritmos, entonações, melodias, engasgos, reticências, enganos, vai seguindo uma organização da comunicação.

Um polegar para cima tanto pode ser um “ok” como um tipo de sinalização da economia das palavras. Penso que nenhuma conversa se aventura a se estender muito depois do tal dedinho. Quando me enviam um deles, ensaio rotas de fuga. Os dedinhos, além dos diálogos longos, suspendem o jorro das emoções.  Diante da passagem de doença, perdas, luto, separação, mãozinhas que desenham um “amém”, por vezes, calam o prosseguimento da partilha da dor. Sem falar do recurso da aceleração da voz no WhatsApp, suprimindo entonações, silêncios, rítmicas e fluxos da fala.   

O layout das palavras, construído entre signos da tecnologia digital, embaraça as clássicas narrativas. Um outro alfabeto, constituído por ideogramas de palavras cifradas, cria um tipo de língua em constante mutação. Se uma carinha, um emoji, vermelhinho de raiva, de indignação, for inserido em uma escrita “doce”, melosa, tudo se esvai. Uma amiga relatou que, diante de uma imagem no Instagram de uma pessoa exibindo taças de um bom espumante, ela errou de carinha e exibiu uma com lágrimas a descer. De imediato, foi interpelada: “por quê?”. Uma carinha, destituída de qualquer explicação, pode gerar desafetos. De outro modo, o envio da imagem da figura de pequena fogueira, deixa faíscas no ar. 

Sabe-se que as letras no fundo, como diz Flusser, além de serem letterns mortas, inventadas para organizar em linhas a magia do que se fala, podem engolir a vida da língua. Palavra, gesto, poesia criam a trama do texto, que etimologicamente significa tecido. A palavra, quando surge apenas com o objetivo de informar, mecanicamente, pode ser tão ou mais despotencializada de sentido do que um emoji, um gif, ou uma sonorização da letra.

Houve uma ocasião em que estava com amigas a dançar reggae em Canoa Quebrada, uma paradisíaca praia do Ceará, quando um rapaz se aproxima e pergunta: “como posso chegar na sua amiga?”. Respondo: “chega com sutileza. Seguindo o ritual da sedução, ele diz: “gata, tô chegando perto de você com sutileza”. Ela se derreteu toda pela luminescência da escuta da palavra. O homem transformou o gesto em nome. E a noite se fez manhã. 

Decidi, recentemente, reconfigurar o recado da minha página do WhatsApp: “amo áudios. aceito ligações”. Uma trama de metáforas se desenha em duas frases, sinalizando um fluxo aberto de conversa. Jeito de ser da menina saliente e atrevida que acena aqui e acolá. A mãe dizia: “lá vem a criatura e suas falas sem fim”.  Meu fetiche por palavras é antigo. Penso que elas existem, do mesmo modo que os patrimônios, para serem profanadas, reescritas. Após o recado maroto na página de configuração do WhatsApp, nada mudou. Apenas a família prosseguiu nas pontuais chamadas. 

As palavras, esse objeto do desejo, continuam sendo desenhadas, encenadas. A infinita variação da trajetória de um objeto, o percurso imprevisível dos átomos, recebeu um nome bonito, como diz Lucrécio, de clinâmen. Todas as coisas são emissoras, sem interrupção, em todas as direções. Tudo corre, inclusive os ícones que promovem as linguagens tecnológicas. Vamos construindo outros textos, na conexão entre palavras e linguagens pictográficas que animam as conversas eletrônicas. As narrativas, assim como os bordados, se multiplicam entre sinais. 

A cada segundo, um emoji está sendo usado. Uma espécie de alfabeto digital de interação cria uma réplica da esfinge – decifra-me ou devoro-te. Sim, podemos seguir avessos às carinhas amarelas. As mãozinhas que encenam movimentos condensados em letras. Eu que tenho vontade de abraçar as palavras, lambê-las, ver o pôr do sol de mãos dadas a elas, prefiro abrir outras janelas. Não quero nada perder. Ler é o pico mais alto de ver o mundo. Seja por onde for. 

Rosa Montero, no “A Louca da Casa”, fala dos constantes tumultos de seus devaneios narrativos. Diz que a realidade não passa de uma tradução da enormidade do mundo.  O louco é aquele que não se adapta a essa linguagem. Para alguém como eu, a quem escrever é bote de salvação, poderia simplesmente me deixar naufragar diante de um mar de ícones que atravessam as redes sociais. Fugiria, como quem se perde dos sítios que desconhece. Guardaria as palavras entre papéis costumeiros. Só que não.

Escrevemos, nos ditos de Rosa, na escuridão, sem mapas, nem bússolas, flutuando no vazio. Seria, nesses tempos extremos, falar um risco? As palavras podem tecer fios que se alongam sem destino, sem paradeiro?  Quem sabe elas revelem o vazio que nos assalta. Imagens, os tantos dedinhos, carinhas, mãozinhas, figurinhas, nos livram do que não suportamos escrever ou daquilo que não sabemos como dizer? A resposta demanda percorrer novas rotas da linguagem.  

Não gostaria de afirmar tal coisa. De proferir, somos nós e não as coisas que flutuam entre vazios. Algumas vozes sensatas costumam bradar contra todos os riscos que margeiam a adesão às tecnologias digitais. Os escapes das tantas midiatizações de si. Há controvérsias. Philipe Joron, no livro “Laço Social e Tecnologia em tempos extremos”, lembra que as fissuras e fraturas que nos assaltam fazem parte da nossa pele existencial, seja física ou digital.  Somos carimbados pelas faltas que nos separam e nos unem. Cabe extrair daí alguma sabedoria, esperteza. Como se costuma dizer na linguagem popular, não serei eu a abestada.  Se toca um reggae, uma música qualquer que me faz querer chegar em algo, em alguém, estando aqui ou acolá, eu vou. Inscrevo em cada toque, entre sinais a decifrar, um jeito de continuar a dançar. Uso “carinhas”, “mãozinhas”, se preciso for, para costurar palavras em silêncio. Elas permanecem.

Pouco importa se lá fora os nomes refluem em baixas marés. Diante das paisagens desmobiliadas de textos, de voz, escrevo por dentro e por fora. No abismo vulcânico entre letras, deixo ferver o que posso dizer. No meu corpo, cada dito tem espessura, cheiro e invenção. De resto, sou permeável. Brinco de (ar)riscar entre dedos e símbolos.  Mas não minto. Quero mesmo é segurar tua palavra entre meus dentes. Na saliva quente de um texto ainda a ser inscrito.  Com sutileza.   

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).