Bemdito

Hiperconsciência, silêncio e exaustão do eu na vida online

Será que narramos tanto de nós mesmos e dos outros nas redes sociais para esconder o que não dizemos? Ao dizer tanto, morre-se um pouco?
POR Paula Brandão
Prayer and meditation (Barbara Eberhart)

Uma profusão de revelações diárias sobre o mais ínfimo sentimento pessoal é anunciada diariamente na Internet. Sabemos exatamente onde as pessoas estão e como estão se sentindo. Esse palavrório explode numa época em que temos mais medo do outro, mas sentimos a necessidade diária de compartilhar nosso ovo frito com bacon do café da manhã.

Em qualquer texto que lemos percebemos que as pessoas não conseguem se distanciar delas mesmas. O voo da borboleta só tem interesse porque ela pousou no seu ombro na hora da foto. Há uma ideia permanente de que tudo o que se pensa é extremamente importante que seja dito de imediato, sem qualquer processo reflexivo. Assim, andamos bem exaustas das confissões de si e desejamos análises mais distantes desse espelho côncavo.

No mundo contemporâneo, de acordo com Jia Tolentino, em Falso Espelho, o órgão central é a Internet. E adivinha qual é o último recurso natural que o capitalismo busca se apropriar? O eu.

Vivemos em tamanho estado de hiperconsciência que já não temos mais limites para suportar tantas notícias sobre catástrofes diárias, esbanjamento de luxos, festas clandestinas, e esse movimento causa uma necessidade permanente de retroalimentar-se. Seremos sempre seres incompletos nas redes sociais, demandantes de mais likes, aprovação e bajulação. A Internet coloca uma necessidade diária de autopromoção de si, e para isso, vende-se a própria paz.

De acordo com a autora, há cinco problemas que se cruzam nesse território: a Internet distorce nosso senso de identidade; encoraja a supervalorização das nossas opiniões; maximiza o senso de oposição; degrada a compreensão de solidariedade; e destrói a noção de escala. Há mais amizades sendo feitas em torno do ódio, nas redes, do que em busca de liberdade. A lacração acontece ao ser o mais escrachado possível, na busca de aceitação.

Você precisa parecer ser interessante e viajado no Instagram. Já o Facebook há muito virou o canal de autoanálise de opiniões, um desabafo frequente de ideias de ódio ao diferente e de amor pelos que fecham com eles.

Nessa bolha, são feitos tantos relatos extensos, que até mesmo uma pasta dental apertada ao meio é motivo de uma longa verbosidade sobre o comportamento humano. As notícias envelhecem roçando, virtualmente, de boca em boca, em poucos minutos, e começam a dar uma sensação de desgaste. O excesso de descrição de si faz com que um esquilo morto à sua porta seja mais importante do que milhões de mortos na África, como li dia desses.

Somadas as atividades remotas, tem sido uma vida terrível e aflitiva o contato com as redes e o WhatsApp, a cada som de chegada de mensagens, curtidas ou comentários. Estou falando sobre tudo isso, pois é algo que muitas vezes fiz no automático, assim como você. Sem pensar o que aquilo me acrescentaria ou me exporia diante de pessoas que nem sei quem são, dos fiscais da Internet que sabem se você se vacinou e qual é a sua comorbidade; que, pela foto do seu sapato no chão, descobrem onde você foi e com quem, e pela dedicatória postada, decidem a temperatura do seu amor.

Excesso de estímulos virtuais

O filósofo Michel Foucault analisou que nunca fomos tão estimulados a falar sobre tudo o que sentimos ou pensamos, em palavras, atos e omissões, como no século XX. Para tanto, foram criados espaços de escuta para tais confissões infinitesimais, como as igrejas dos padres, os consultórios dos psicanalistas e dos médicos, e os tribunais. O autor, morto em 1982, não tinha como imaginar que hoje os desejos e as feitorias estariam sendo despejados, gratuitamente, nas redes, para os ouvidos que estiverem dispostos a ouvir.

Boris Cyrulnik, em Dizer é morrer, revela que, quando se fala excessivamente, é para esconder o que não pode ou não deve ser dito. O não compartilhamento das emoções ou de algumas delas faz com que se instaurem em quem se cala, zonas de silêncio, criando um certo baixo-falante que não cessa de falar o inconfessável. Fala-se demais para esconder o relato insistente do mundo interno. Falamos orgulhosamente do que é compartilhável, mas escondemos nossos sentimentos mudos. Não se pode baixar a guarda do que é transmitido para não deixar que escapem as misérias. Prazer e raiva são o que mais se mostra! A última porque, ao demonstrar indignação em um texto, rapidamente, arranja-se aliados e regozija-se com os likes recebidos enquanto rumina o ódio.

O autor avalia que “é difícil calar, mas é possível não dizer.” Me pergunto se, diante desse esgarçamento de nudez do eu, ainda existem lugares de refúgio dentro de si, zonas sombreadas que fogem às lentes dos outros. E aqueles que aceitam o jogo, ao entrar numa rede social, e ficam só no olhar mórbido, curiando o outro para ter o que dizer, sem nada falar?  Será que narramos tanto de nós mesmos e dos outros para esconder o que não dizemos? Ao dizer tanto, morre-se um pouco? 

Quanto mais você puder atentar para tais questões, como eu fiz, perceberá que não há nada de tão importante sendo dito por aí que valha a pena você deixar de olhar nos olhos de seu próximo, num café ou passeio. A aproximação com essas tecnologias na pandemia pode ser a paulada final para nosso apartamento do outro em carne viva. Desplugue-se, desconecte-se vez por outra. Desligue-se! Nunca usamos tantos termos que nos comparam às máquinas. Mas lembro: somos seres humanos. Ainda dá tempo!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).