Bemdito

“O resto da minha vida sem meu filho”

Um ano do caso Miguel, filho da empregada doméstica que caiu de apartamento por irresponsabilidade da patroa
POR Izabel Accioly
Foto: arquivo pessoal

“O resto da minha vida sem meu filho”. A frase de Mirtes Renata Souza, mãe de Miguel Otávio, ecoa em mim há um ano. Miguel morreu ao cair do 9º andar do condomínio de luxo em que sua mãe trabalhava. Perdeu a vida aos cinco anos, por negligência de Sari Corte Real, “patroa” de Mirtes, que havia ficado responsável pela criança. 

Sari não teve paciência para cuidar do menino. Estava fazendo as unhas, ficou irritada com o choro de saudade de Miguel, que pedia pela presença da mãe. Sari então abandonou Miguel sozinho no elevador do condomínio. As câmeras de segurança mostram a mulher direcionando a criança para um andar superior, de onde ele veio a cair.

“Ela não trataria assim o filho de uma amiga”.

Como muitas mães negras, trabalhadoras domésticas, Mirtes precisou levar Miguel ao trabalho. Uma mulher negra e seu filho, na casa de uma família branca. A avó de Miguel, Marta, também havia trabalhado para eles. Duas gerações de mulheres negras, trabalhadoras domésticas, servindo-os. Quase da família, alguém pode pensar.

O trabalho doméstico é uma das maiores heranças do período escravocrata no Brasil. Aprendi com Preta Rara, “o quarto de empregada é a senzala moderna”. O racismo se expressa no modo como as trabalhadoras domésticas são tratadas – e destratadas. Baixos salários, tratamento vexatório e péssimas condições de trabalho. Mirtes infelizmente não escapou dessa realidade.

“Ela tirou de mim o meu neguinho, minha vida, por quem eu trabalhava e acordava todos os dias”

Quando Miguel perdeu a vida, Mirtes precisou defender o filho. Encontrou-se com o racismo institucional que permeia o sistema de justiça brasileiro. Sari Corte Real está livre após pagar fiança de R$ 20 mil. 

Ainda em luto, Mirtes começou a graduação em Direito, em uma universidade particular de Recife, com bolsa integral. Entre as fotos e os brinquedos de Miguel, agora estão os livros. Mirtes deseja justiça para Miguel. Que a justiça seja acessível para todos.

Izabel Accioly

Mestra em Antropologia Social pela UFScar, é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades da USP/UFScar.