Bemdito

“Eu não sou sua negra”: trabalho doméstico, racismo e o pó que não limparemos

Herança colonial latente na sociedade racista em que vivemos precisa acabar, virar pó; e não estaremos lá para limpar
POR Izabel Accioly
Foto: Reprodução/TV Globo

Em 25 de agosto, Raiana Ribeiro, uma jovem mulher negra, se viu diante de uma situação desesperadora. Após sucessivas discussões e ameaças, a empresária Melina Esteves França, sua empregadora, passou a lhe agredir verbal e fisicamente. Nas imagens do sistema de câmeras do apartamento, é possível ouvir a ex-patroa ameaçando:

“Eu sei bater. Eu não deixo uma marca em você. Eu arrebento tanto a sua cabeça que você vai parar no hospital. Não brinque comigo, não!”.

As cenas que se seguem são de terror: socos, chutes, puxões de cabelo e ofensas à profissional. A motivação de toda essa violência seria a recusa por parte de Raiana em continuar prestando seus serviços para Melina. Ela argumenta que a violência com que era tratada piorou após ter comunicado a empregadora que iria embora.

No dia seguinte, a babá teve seu celular tomado e foi trancada por Melina em um dos banheiros da residência sem água ou comida. Diante desse contexto, Raiana relata que viu a fuga como opção. Teve de se jogar da janela do apartamento em que estava, no terceiro andar de um condomínio no Imbuí, bairro de classe média alta de Salvador.

A babá foi socorrida, sofreu fraturas nos pés e escoriações pelo corpo e o caso passou a ser investigado pela polícia. Após a repercussão do acontecido, outras onze mulheres, todas negras, prestaram depoimento para a polícia e relataram também terem sofrido agressões, maus tratos e ameaças por parte de Melina.

O fato deste caso ter ocorrido na capital mais negra fora da África não é irrelevante. Pelo contrário, raça é elemento central para entender esta situação. A herança escravocrata enraizada naturaliza o modo cruel como mulheres negras, em especial, as que desempenham trabalho doméstico, são tratadas em nossa sociedade.

Nos últimos meses, vimos repercutir diversos casos de mulheres negras que eram submetidas ao trabalho análogo à escravidão. Um dos casos mais conhecidos foi o de Madalena, mulher negra, que foi escravizada desde a infância por uma família branca de Minas Gerais. Por quatro décadas, Madalena teve seus direitos negados, foi maltratada, teve sua vida roubada.

Em janeiro, uma idosa negra de 63 anos foi resgatada em situação de trabalho análogo à escravidão. Residente no Rio de Janeiro, a mulher trabalhou por 41 anos sem direito a salário. Quando não estava limpando a casa dos patrões, catava latinhas na rua. O dinheiro arrecadado com a reciclagem desse material era tomado pela família que a maltratava. Além disso, seus patrões receberam os valores do auxílio emergencial ao qual a idosa tinha direito.

É notório que a pandemia da Covid-19 agravou as condições de vida de grupos vulnerabilizados, mas não é novidade a violência que mulheres negras que desempenham trabalho doméstico sofrem no ambiente de trabalho.

Gênero e raça são elementos centrais que, entrelaçados, nos ajudam a compreender a condição das mulheres negras brasileiras. Subalternizadas, estamos sempre na busca pela sobrevivência e, infelizmente, a maioria de nós está longe da conquista da autonomia, que dirá do bem viver.

Ao longo dos anos, aconteceram mudanças superficiais nas dinâmicas da opressão racial, entretanto, estruturalmente, mulheres negras continuam sendo a base. A escravização não foi extinta, apenas ganhou uma “nova” roupa remendada em meio ao capitalismo racializado.

A herança colonial latente na sociedade racista em que vivemos precisa acabar, virar pó. Talvez seja por isso que tantas mulheres negras evoquem o poder transformador das chamas quando clamam por “fogo nos racistas”. Desejamos que queimem e virem pó. Nós não estaremos lá para limpar.

Izabel Accioly

Mestra em Antropologia Social pela UFScar, é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades da USP/UFScar.