Bemdito

Racismo, privilégio branco e antirracismo

Para pensar sobre racismo, é também necessário olhar criticamente para o privilégio branco
POR Izabel Accioly

Uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede à formação de sua consciência e de seus efeitos. (ALMEIDA, 2018, p. 53)

A hipótese de que existem diferenças entre as raças já foi descartada pela Biologia. Entretanto, quando pensamos socialmente, sabemos que existem grupos étnicos desfavorecidos e privilegiados. Nossa autopercepção racial é um processo e acontece à medida que nos relacionamos socialmente.

No meu caso, a descoberta da minha negritude foi costurada por alguns episódios: na infância, o racismo recreativo por conta do meu cabelo; na adolescência a hipersexualização e os abusos; na vida adulta, o subemprego, a violência obstétrica, além das dificuldades de acessar e permanecer na universidade pública.

Infelizmente, a minha compreensão enquanto mulher negra foi marcada pelo racismo, e não por uma valorização da cultura do povo negro. Apesar de relatar aqui a minha vivência, suspeito que não exista experiência negra que consiga escapar do racismo.

Segundo Juliana Borges, a ideologia racista é o mito fundante da sociedade brasileira. Apesar dessa triste constatação, luto diariamente para transformar essa realidade. Antirracismo é a constante busca pelo fim da hierarquia racial em que vivemos.

Antes mesmo de entender a minha negritude e me tornar crítica ao preconceito racial, esse antirracismo já acontecia, ainda que eu não o nomeasse. A necropolítica impera em nosso contexto social. Somos governados por uma elite que naturaliza e trabalha para a aniquilação do povo negro. Diante dessa realidade, ousar existir, por si só, é um ato de resistência. Muitas vezes o antirracismo é a própria vida.

Enquanto antropóloga que pesquisa branquitudes, me questiono sobre as possibilidades de engajamento de pessoas brancas na luta antirracista. A sociedade de supremacia branca em que estamos inseridos privilegia material e simbolicamente a branquitude. Além disso, condiciona pessoas brancas a se julgarem superiores aos demais e merecedores das vantagens indevidas que ostentam.

Como mencionei anteriormente, infelizmente, não considero possível uma experiência negra sem racismo. Do mesmo modo, acredito que não há uma experiência branca desvinculada de seus privilégios. Mesmo uma pessoa branca que estude sobre a questão racial e atue fortemente para a transformação social, ainda assim, continuará a ter privilégio branco.

Raça acontece em relação. Mesmo que seja crítica ao racismo e adote práticas antirracistas, essa pessoa branca poderá entrar em um supermercado e realizar suas compras sem medo de sofrer violência. O segurança do supermercado continuará tratando-a como branca. E pode até parecer algo corriqueiro para um branco o fato de conseguir ir e voltar das compras vivo, mas, para nós, pessoas negras, não é. Isso ocorre porque o racismo organiza e estrutura a nossa sociedade.

Há um limite para o antirracismo da branquitude. Limite. Essa é uma palavra que causa irritação sempre que apresento esta argumentação.

Como ousa dizer que eu não posso algo?!

Não se engane com o meu tom fatalista. Apesar de observar as limitações de brancos na luta antirracista, acredito e valorizo as ações individuais. O debate que proponho é sobre os papéis de pessoas brancas e negras na luta antirracista. Entender quem é protagonista e sofre a opressão racial e quem é aliado e faz escolhas políticas contra a lógica supremacista branca.

Brancos podem ser aliados na luta antirracista, mas o povo negro é protagonista. Essa delimitação não é irrelevante. Quando menciono os limites do antirracismo branco, a irritação parece ter relação com o vício em protagonismo, a necessidade de estar sempre no centro. Sinto muito ferir o ego branco de alguns, mas é necessário lembrar que o povo negro está à frente da luta antirracista desde sempre.

Somos resistência, somos antirracistas. Brancos estão antirracistas. Para ser aliado na luta antirracista, é preciso um compromisso ético e político contra a dominação de alguém. Esse compromisso não deve estar dedicado apenas ao apoio da luta antirracista, mas, principalmente, na constante revisão de suas práticas, relações, discursos e privilégios. Cida Bento afirma que “não há possibilidade de pensar o sofrimento do negro sem trazer a questão da dominação do branco”. Me atrevo a complementar: para pensar sobre racismo, é também necessário olhar criticamente para o privilégio branco.

Izabel Accioly

Mestra em Antropologia Social pela UFScar, é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades da USP/UFScar.