Bemdito

Na aquarela do Brasil carcerário só existe uma cor

Quando a etnia, a classe social e o gênero são fatores determinantes de nossa liberdade
POR Olivia B. de Avelar
Detalhe do poster do filme "Carandiru", de Héctor Babenco

Presídio, no Brasil, não é o lugar para onde vão os ladrões. É o destino dos ladrões pobres. Não é a instituição estatal responsável por retirar do convívio social os criminosos. É a latrina de despejo de criminosos pobres e pretos. É a antessala desoladora — sem saída e sem retorno — onde esperam os muitos que nem sequer foram julgados, os que cumprem uma pena prévia, por indigência e por humilhação. O nosso sistema carcerário não prende e não pune criminosos. Ele prende, pune, violenta e devasta criminosos pobres. E, em sua imensa maioria, pretos. A aquarela do Brasil carcerário é a trilha sonora de uma nota e de uma cor só. Invariavelmente, o pobre. Navionegreiramente, o preto.

Supostamente, as penas aplicadas variam de acordo com os crimes: seus agravantes e seus atenuantes. Mas como se atenua o crime primeiro de nascer pobre? Nascer pobre só tem agravante: nascer pobre e preto. Qualquer que seja o crime cometido depois desse delito/marca de nascença, será visto, julgado, condenado e cumprido nos rigores da lei. É o peso da mão branca, rica, masculina e escravagista do estado que segura a caneta e sentencia a pena alheia.

Começamos a décima quinta semana do clube do filme paradas à porta do Carandiru. Não existe coragem ou indignação que convençam as pernas de quem não foi obrigado a ouvir aqueles portões se fechando atrás de si a entrarem lá. Durante todas as semanas anteriores, nos propomos a experimentar, com os filmes, algumas horas de imersão — não assistir aos filmes, somente —, mas prová-los com todos os cinco sentidos: além de ver as cores, estarmos vulneráveis aos cheiros das cenas. Além de ouvir às músicas, trazermos para o céu da boca o gosto das emoções dos personagens. E ao tato, o toque final: a pele como termômetro de entrega aos afetos colhidos e reverberados. Mas não no Carandiru. Aqui, assistimos à história de uma distância que nos assegurasse e confirmasse que a tela mostrava uma realidade que não precisamos experimentar. O inferno mostrado na tela é real: aterrador, insuportável e dilacerante. 

A visão das janelas, grades, corredores e celas forma um quadro dantesco. Um estado de coisas defendido e salvaguardado por outro grupo de corpos que também nasceram pobres, que também são descartáveis, que também cometem crimes, mas que vestem fardas e matam seus iguais para deleite dos que se afirmam diferentes. Se estivessem todos juntos e nus, em um banho de sol vigiado somente pelo olhar do céu, ou de qualquer Deus que existisse acima de nós, quem saberia a diferença entre eles? Detentos e policiais, criminosos e homens de farda — em um massacre sangrento que começou no dia dois de outubro de 1992, mas cujos gritos conseguimos ouvir até hoje, nas gargantas de todos os detentos em todas as instituições carcerárias no Brasil. A corpo nu, aos olhos sobrenaturais — livres da cegueira proposital sobre a construída hierarquia que organiza os humanos sobre os sub-humanos — repito, qual a diferença entre eles? Quem é o mocinho e quem é o bandido nesse bang bang que serve de entretenimento aos homens que detém o poder sobre a vida e a morte de ambos?

Os mandantes do assassinato de Marielle Franco estão soltos, mas as cadeias estão cheias de assassinos. Os grandes traficantes de , parceiros de políticos conhecidos, estão soltos, mas as cadeias estão cheias de traficantes. O homem poderoso que estuprou Mariana Ferrer está solto, mas as cadeias estão cheias de estupradores. Os mesmos crimes: berços diferentes, poderes diferentes, sentenças diferentes, destinos diferentes.

Se a justiça divina não passa de um mito criado para fazer tementes aqueles que creem em Deus, só nos resta a justiça dos homens. De quais homens? Por quais mãos foram escritas as leis? De quais mãos e mentes partiram as normas que todos devemos obedecer? Qual a cor dessas mãos? Quais são suas posses e seus interesses? Quais embates sociais fizeram surgir as leis dos homens? A quem elas protegem e a quem elas condenam?

Ricos e pobres cometem crimes. Pretos e brancos cometem crimes. Poderosos e desprovidos cometem crimes. Homens e mulheres cometem crimes. Mas antes mesmo de nossos delitos existe aquilo que somos. Antes do que fazemos de certo ou de errado. De louvável ou de imoral. Antes de seguirmos o caminho da ética ou da criminalidade. Antes de nós, de todos nós nascermos e entrarmos no palco da vida em sociedade existiram muitos homens, muitos massacres, muita guerra e muita subjugação de muitos pelas mãos de alguns poucos. E cada passo dado nas lutas entre os povos e lutas de classe do passado já escreveu quais seriam nossos delitos e nossas penas. Não há julgamento de crimes: os juízes condenam ou absolvem, primeiro, quem nós somos.

Não nascemos livres porque não podemos escolher não nascer pobre, não nascer preto, não nascer mulher, não nascer insignificante. Nós, que pagamos nossas penas aqui fora, seguimos obedientes os desígnios do pai capital, servindo e acatando as leis e as normas sociais criadas à nossa revelia: sem nossa participação e opinião. Eles, que pagam suas penas lá dentro, povoam as sagradas celas: as instituições carcerárias são os lares inspirados por Deus — justificam seus humanos criadores — para onde se enviam o corpo e a alma de todos os pecadores cujos crimes sem perdão não são o assassinato, o roubo, o estupro ou o tráfico — esses crimes são facilmente absolvíveis. Imperdoável, pela lei dos homens, é não ter um sobrenome de respeito, não ser dono de fazenda, não ser dono de políticos, não ser militar, não ser empresário, não ser jogador de futebol famoso.

Para aqueles que são alguém — há todo o aparato judicial para que se garanta a liberdade que ganharam ao nascer. Para aqueles que são ninguém — há o mesmo aparato judicial para que se faça cumprir a sentença que receberam ao nascer. Se os crimes nos igualam, são a nossa etnia, classe social e gênero os fatores mais determinantes dos limites da nossa liberdade, do tamanho da nossa cela e do peso da nossa pena.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.