Bemdito

São José, um homem justo

O que a história bíblica de José revela sobre uma paternidade menos autoritária e mais afetuosa
POR Ricardo Evandro

O filósofo italiano Massimo Cacciari deu ao seu livro sobre Maria, Mãe de Cristo, o título de “Gerar Deus”. Em resumo, Cacciari reflete sobre este poder de ser a própria mãe de Deus. Esta ideia, aparentemente paradoxal de ser aquela quem gerou Deus, é algo que foi ignorado por grandes filósofos como Hegel e Schelling, mas que chama a atenção de teólogos e, agora, do filósofo contemporâneo italiano. 

No último sábado, celebramos o dia de uma outra pessoa da família de Cristo, provavelmente mais ignorada pela filosofia do que Maria foi e que pouco aparece menos ainda nos Evangelhos canônicos. Foi dia daquele que não “gerou” Deus encarnado, também não é o Espírito Santo da Trindade, nem o Deus Pai. No último dia 19 de março, comemorou-se o dia do “pai terrestre”, o “pai legal”, ou “pai segundo a carne”, de Jesus. Diferente de Maria, Virgem, José não tem laço de sangue com Jesus. Mas, então, o que ele fez,  o pai “precário” de Jesus, enquanto era vivo? 

Por Marcos e Mateus sabemos da profissão do pai terreno de Cristo. Ele foi chamado de “carpinteiro” (Mt 13, 55; Mc 6, 3). No Evangelho de Mateus, podemos saber o nome do pai de José, chamado por Jacó, de uma longa ascendência até Abraão (Mt 1, 1-16). E neste mesmo Evangelho encontramos a situação mais crítica de José: sua noiva, Maria, antes de consumar o casamento, estava grávida. 

É Joseph Ratzinger, Bento XVI, no seu famoso livro “A infância de Jesus”, quem explica até mesmo a dimensão jurídica desta “crise”. Segundo diz o Papa Emérito, apesar de serem ainda noivos, Maria já podia ser chamada de “esposa de José”, pois “o noivado já representava um vínculo jurídico entre os dois comprometidos”.

Como está em Mateus, “antes que eles tivessem consumado o casamento — ela [Maria] foi descoberta como tendo [concebido] no ventre a partir de um espírito santo.” (Mt 1, 18). Segundo Bento XVI explica, ocorre que José ainda não sabia da imaculada concepção e, ao saber da gravidez, antes de dividirem a mesma casa, “supõe que Maria rompeu o noivado e — de acordo com a lei — deve abandona-la”. 

Mas José não a abandonou. Primeiro, decide agir de modo privado. Sim, para proteger Maria do escândalo público, seu noivo opta por “divorciar-se dela secretamente” (Mt 1, 19). Bento XVI ensina que pela lei judaica, José poderia levar Maria a um tribunal, mas como “homem justo”, acabou por se inserir “entre as grandes figuras da Antiga Aliança”. Como no Salmo 1,  José é justo no sentido daquele que “encontra o prazer na lei do Senhor” (Salmo 1, v.2). 

Assim, José, “justo” ou “reto”, sonha com um anjo do Senhor, que lhe diz: “‘José, filho de Davi, não temas tomar Maria como tua mulher. O que nela foi concebido [vem] de um espírito santo. (…)'” (Mt 1, 20). Agora ciente de seu dever, “o carpinteiro” assume seu filho neste mundo. 

Mas a grande verdade é que sua vida é ainda misteriosa. Somente os chamados evangelhos apócrifos — aqueles textos não reconhecidos como autênticos, por autoria duvidosa ou por incorrerem em heresia — é que dão conta de mais detalhes sobre a vida de José e sobre sua vida depois do nascimento de Cristo. 

Acerca do tema, Marcionei Miguel da Silva publica “José no mistério da encarnação”. Neste trabalho, o autor lembra dos textos apócrifos e de como José era narrado por eles, ora como pai machista, autoritário, víuvo de seu primeiro casamento, ora como temente de seu filho-Deus travesso, vingativo com seus amigos. 

Pelos apócrifos, José é conhecido com mais detalhes.  Mas, mais do que revelar os mistérios da “espiritualidade josefina”, talvez seja mais importante a tarefa de se estar atento à mensagem que seu exemplo de vida dá, sua forma de viver, em fidelidade e retidão. 

Em tempos de crise profunda da figura da paternidade, como ocorre no Brasil, onde 11, 5 milhões de famílias vivem sem a presença daqueles chamados por “pai”, segundo dados do IBGE, de 2018, resta saber o que remanesce para os pais, cuja função não é a de “gerar” Deus, como Maria fez. 

Mesmo sem anjos para lhes determinar seus deveres, poderia José servir de exemplo para os pais, de paternidade impreterivelmente humana? O que é ser pai, no seu devir histórico e cultural? Que resta ao pai nos trabalhos domésticos, na educação dos seus filhos, na formação de um “homem justo”, como foi José? 

Todas essas questões sempre correm o risco de cair em moralismo ou numa interpretação pouco crítica da diversidade do significado da paternidade. Não pretendo responder a nenhuma destas questões — nem sequer poderia fazê-lo. Mas nos resta no dia de São José lembrar de sua figura, tentar entender, em torno de seu mistério biográfico, que pode ter fortemente constituído a mentalidade cristã brasileira, que a paternidade atravessa esses milênios como um problema em forma de questões. 

Se se anuncia que “Deus morreu” e se se sabe que vivemos no “tempo do niilismo”, mesmo em pleno crescimento do pentecostialismo em nossas terras, com sua moralidade cristã rigorosa — por Deus acima de tudo, pátria e família como valores e lemas –, mas que convive, paradoxalmente, com o fenômeno social do abandono paterno, então ser pai, e um pai justo,  intriga como se fosse um mistério divino.

E talvez porque seja mesmo. Mas um caminho a forma de vida de José pode oferecer: procurar saber se nós, homens, nas diversas possibilidades de termo masculino, somos capazes de ser “justos”, pelo menos ao ponto de não abandonarmos os nossos filhos, mesmo que o Filho seja de outro Pai.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.