Bemdito

São tempos difíceis para os textos difíceis

O desafio de escrever para cativar a atenção em tempos de mentes esgotadas e conteúdo fast
POR Cláudio Sena

Ainda há tempo, energia e desejo para a leitura do texto difícil? O que nos exige mais de dois golpes de vista e que não conta com imagens ou emojis parece nos solicitar também grande esforço. Aquele agrupamento de palavras fora de nosso uso recorrente frita o cérebro habituado às informações de mão beijada. 

Nossa cabeça, às vezes preguiçosa, às vezes só cansada mesmo, acostuma-se com o fácil. Quando mais abastecida por este conteúdo mastigado, mais estranha tudo que coloca os neurônios fazendo prancha e abdominal. 

Não falo de Hegel, Kant, Habermas e textos acadêmicos (alguns propositalmente herméticos para tornarem-se ainda mais acadêmicos). Longe disso. Trato daqueles textos que exigem um pouco de interesse, tempo e curiosidade.

Mas não é tão simples assim. Depois de um dia cheio de trabalho e aborrecimentos, é natural que a cuca esteja apta apenas a suportar reflexões reducionistas a partir do tweet sobre quem deve sair na próxima eliminação do BBB. 

No contexto frequente de exaustão completa, quando a cognição começa falhar como motor de carro velho, é compreensível que nossa mente faça morada nos mais bobos e efêmeros dos vernáculos digitais. 

Escritores, autores, todos e todas de textos densos e dispendiosos, à guisa de João Cabral de Melo Neto, têm grande tarefa caso busquem audiência em primeiro lugar. Mesmo com sua “Faca só lâmina”, o poeta e diplomata recifense ia ter de cortar um dobrado atualmente para deter atenção dos leitores ávidos pelo entretenimento bobo.

“Um poema meu é um negócio que muitas vezes leva anos para ser feito”, diz ele. Seria justo, então, gastarmos 5 minutos em poucas estrofes. Mas até isso é difícil para aqueles que nasceram e cresceram com olhos grudados nas pequenas telas de telefone. 

“Eu vi que era possível escrever uma poesia com textura áspera, poesia que fosse difícil de ser lida em voz alta, que não embalasse o leitor.” 

A coragem de João Cabral em investir neste esforço estilístico se faria triplicada nos dias de hoje, diante deste cenário impregnado por um fast conteúdo, por mentes cada vez mais esgotadas e por um desejo de sobrevivência em tempos difíceis. 

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

(Uma faca só lâmina/ou: serventia das ideias fixas – 1955)

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.