Bemdito

Adoráveis mulheres

Um filme sobre nós, por nós mesmas
POR Olivia B. de Avelar

Semana passada, em uma conversa com minha amiga, falávamos sobre uma personagem de uma série de TV que, mesmo sendo uma das protagonistas da trama, não tinha nenhuma profundidade. Como na famosa letra da música de Chico Buarque, ela “não tinha gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, tinha medo apenas”.

Uma personagem mulher, jovem e bonita, representando um papel de destaque em uma série famosa, criada para ter medo, apenas: ela temia pela vida, pela saúde, pelos sonhos desfeitos, pela família repressora, pela sociedade violenta – tudo isso por seus amigos. Ela cozinhava para eles, cuidava dos que adoeciam, deixava o trabalho na cidade grande para viajar até o interior por dias, apenas para vê-los, para cuidar e zelar por eles. O que eu achei mais curioso e, até mesmo, insidioso, nessa personagem em particular, foi o fato dela não estar figurando em uma história de época, em uma trama ambientada em séculos passados ou em décadas reconhecidamente repressoras dos direitos e das liberdades das mulheres.

Trata-se de uma série lançada em 2021 sobre os anos oitenta, que tem como principal foco a vida de jovens libertários que buscavam a fama e o sucesso na capital da Inglaterra. Apesar de viver e ser uma atriz na Londres de 1989 – na série It’s a Sin – a personagem era uma mulher como aquelas cantadas por Chico Buarque. Não para seu marido ou namorado – aliás, durante os cinco episódios da série ela não tem nenhum envolvimento amoroso -, mas para seus amigos.

Essa personagem – que se chamava Jill – foi uma mulher desperdiçada. Uma mulher desperdiçada para si mesma e que estava ali para servir e ser útil, amparar e cuidar e dar força para todos os outros personagens, mas nós, espectadores, terminamos a série sem saber quem ela era, do que ela gostava, do que tinha medo e quais eram seus sonhos. A certa altura do assunto, minha amiga disse (escreveu, no caso, porque estávamos em um aplicativo de conversas) a frase que motivou a escolha do filme e a minha coluna dessa semana: “Não tem jeito, nossas histórias precisam ser contadas por nós mesmas.” E, como eu concordo, vamos a elas – um filme sobre mulheres que escrevem e que contam sobre si mesmas.

O filme Adoráveis Mulheres – 2020, disponível na HBO max – é baseado no livro da autora estadunidense Louisa M. Alcott, publicado em 1868. No Brasil, o título do livro foi traduzido do inglês “Little Women” para “Mulherzinhas”. Essa palavra escolhida como título pelos editores da obra, em nosso país – apesar de se aproximar literalmente do título original – me causa certo incômodo por dois motivos: primeiro, porque a expressão em inglês é usada pelo pai das quatro protagonistas de forma carinhosa e terna, algo que, em português, se aproximaria muito mais de: minhas pequenas mulheres ou minhas queridas mulheres.

O que me leva a imaginar o quanto ele as julgava donas de suas personalidades e que, mesmo elas ainda sendo jovens, ele as via e sentia como maduras ou responsáveis para a pouca idade. O que se justifica, também, pelas dificuldades e privações que elas passam ao longo da história e como reagem de maneira forte a todos esses percalços em suas vidas.

O segundo motivo é menos literário e mais social: a palavra “mulherzinha” é quase que unanimemente usada em nosso país com um sentido depreciativo. “Isso é coisa de mulherzinha”, ou “aquela mulherzinha” são expressões que ouvimos com bastante frequência, infelizmente. O diminutivo usado na língua inglesa e que expressa carinho, cuidado e zelo, quando traduzido para o nosso idioma se altera completamente em seu sentido e, não me espantaria saber que os próprios editores que lançaram a obra por aqui considerassem esse como sendo um “livro de mulherzinha”. E é por isso que a escolha da nova tradução me deixou muito feliz, otimista e esperançosa dos novos tempos em que vivemos: adoráveis mulheres é, de fato, um título muito mais digno e empolgante e, me perdoem pelo trocadilho, certamente adorável.

Sim, adorável é a palavra. Porque é adorável ler as histórias dessa autora que contou sua própria vida e de suas irmãs e sua mãe para que todas nós, tantos anos depois, pudéssemos nos sentar e nos debruçar sobre questões tão íntimas e tão finas e que, não fosse por sua mão ágil de escritora e sua vontade de se escrever e se proteger contra o esquecimento e o tempo, nunca poderíamos ler e conhecer e nos encantar.

Porque é adorável assistir ao filme, dirigido por Greta Gerwig, que transformou a história escrita por Louisa em uma história também sua, imprimindo seu nome entre as grandes diretoras de cinema que fazem nascer os filmes que amamos. Porque é adorável assistir a cada uma das atrizes dando corpo, rosto, vida e voz àquelas meninas/mulheres que, um dia, há mais de um século, moravam apenas nos olhos sensíveis e na antessala das palavras que ainda seriam escritas por uma mulher incrível e, adoravelmente, talentosa. Sim, somos nós mesmas que devemos contar nossas histórias. Somos nós mesmas que devemos escrever, narrar, cantar, pintar e bordar tudo que queremos e devemos dizer.

E devemos fazer isso, na minha opinião, também por dois motivos: primeiro, porque muitas das histórias que contam sobre nós não são boas, não são justas e não são, nem de longe, adoráveis. E, segundo, porque mesmo que essas histórias sobre nós fossem bem escritas e bem filmadas elas nunca serão, nem por um instante, tão maravilhosas e tão encantadoras como aquelas que construímos e contamos nós mesmas.

Nós adoramos essas histórias contadas por mulheres porque nós também somos – todas nós – mulheres capazes, mulheres cheias de palavras que precisam ganhar vida e donas de histórias poderosas, ternas, difíceis e encantadoras que devem ser contadas pelo tom preciso de nossas vozes e pela escrita sinuosa de nossas próprias mãos. Nós adoramos essas histórias de mulheres e sobre mulheres porque somos, verdadeira e genuinamente, mulheres adoráveis.

Dedico a coluna dessa semana a minha amiga Raysa Aride, que me deu de presente esse filme e a frase que motivou esse texto. Em agradecimento por todas as histórias que ela me conta e por me deixar, felizmente, fazer parte de tantas delas.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.